Da bolha das tulipas à bolha financeiro-imobiliária
I- Introdução
As crises experimentadas pelo modo de produção capitalista, que assolam ciclicamente as finanças e a economia dos países e dos espaços mundiais têm tido características qualitativas e quantitativas variáveis ao longo de mais de dois séculos, embora apresentando também aspectos que se vão repetindo apenas com nuances regionais.
Porém, desde meados da década de noventa do século vinte, têm vindo a acentuar-se, tanto a frequência como a amplitude e o carácter agudo destas crises do sistema, agora dito globalizado ou mundializado, sendo hábito recente designar os períodos mais críticos das respectivas crises, como Bolhas Financeiras ou, simplesmente Bolhas.
Estes acontecimentos revelam-se quase sempre portadores de gravidade social e económica, porque acabam por atingir, na sua onda de choque, bem mais do que aqueles que lhe deram origem.
Contudo, com maior ou menor impacto, as crises têm vindo a ser ultrapassadas e, até há meia dúzia de anos, havia uma aura de capacidade auto-regeneradora que conferia uma certa dose de inevitabilidade histórica ao sistema, que, assim, se assumia como dominante, incontornável e insubstituível, principalmente depois da queda do socialismo nos países do leste europeu.
A ocorrência de bolhas financeiras está ligada a práticas de natureza especulativa, e isto porque a acção dos diversos agentes que operam nos mercados financeiros, visando maximizar as mais-valias obteníveis nas sucessivas operações de compra e venda, e em curtos períodos, se socorrem de técnicas complexas, heterodoxas, pouco transparentes, com risco elevado e, nalguns casos, ilegais. De dentro do sistema diz-se, agora, que isto acontece porque os preços "desrespeitaram os fundamentos do mercado" e, ultimamente, acrescenta-se que a regulação e a ética, falharam.
As Bolhas Especulativas, que ocorrem nos mercados financeiros e assumem particular evidência nas Bolsas de Valores Mobiliários, são aumentos muito rápidos, e sem justificação racional económica, do preço de um activo (asset), tangível ou intangível, como são, por exemplo, as acções, os títulos de "futuros" de petróleo e trigo, ou, ainda, as hipotecas imobiliárias titularizadas, seguidas de quedas abruptas e muito cavadas, que provocam elevadas perdas financeiras directas em largos segmentos da cadeia especulativa e, ainda, efeitos negativos colaterais na economia da área regional envolvida.
Estes episódios, também designados no passado como " crashs bolsistas", sendo caracterizados na sua fase de cataclismo (rebentamento da bolha) por uma baixa pronunciada e generalizada das cotações de títulos em bolsa, podem ser seguidos, ou não, de crises económicas – diminuição das produções, do investimento, do emprego, da procura de bens de consumo, etc., – sendo, nesses casos, fenómenos de longa duração que tendem a impactar espaços regionais de grandes dimensões.
Entretanto, o FMI, atento, já editou pelo menos dois estudos sobre bolhas, crises e ciclos [1] .
Entre 1959 e o 3º trimestre de 2002 terá havido segundo alguns autores 52 "crashs" bolsistas em diversos países de topo do sistema capitalista, isto é, crises bolsistas em que as cotações caíram, em cada um dos casos, mais do que 37% e em poucos dias.
No presente artigo iremos focar-nos, sobretudo, nas bolhas financeiras correlacionadas com o mercado do imobiliário habitacional, porque é um fenómeno que, sendo financeiro na sua expressão mais imediata, tem aspectos que o fazem ser particularmente virulento e de grande impacte no meio socioeconómico e no território.
Uma Bolha financeiro-imobiliária, além de apresentar uma lenta e firme subida dos preços dos títulos bolsistas durante meses ou anos, seguida de uma descida brusca e intensa no preço desses títulos (Hipotecas titularizadas) em bolsa, apresenta, em paralelo, uma subida longa e muito pronunciada dos preços das casas de habitação (isto também se verifica com os escritórios e armazéns), a que se segue uma abrupta descida que, normalmente só pára quando se atingem valores mais consentâneos com o valor económico real do bem material (Soma do Valor Actualizado das rendas futuras do imóvel). Estas duas curvas não têm que ser rigorosamente sobrepostas, ou seja, pode acontecer que o pico do mercado dos bens tangíveis (casas) aconteça antes do pico dos títulos em bolsa. Por outro lado, em certos países (mercados) têm acontecido bolhas imobiliárias sem que haja bolha financeira (títulos relacionados com as hipotecas) correlativa.
Antes da grande crise financeiro-imobiliária actual, iniciada formalmente nos EUA em Agosto de 2007, sob o nome da Crise do sub-prime, houve, num passado recente, outros episódios críticos concentrados nos períodos de 1980-1982 e 1989-1992, o primeiro ligado ao processo de desregulamentação posto em marcha nos finais dos anos 70, e o segundo, à política monetária restritiva que se seguiu à injecção de liquidez depois do "crash" de 1987 (Mateus, 2009: 76).
Sabendo-se que é nos mercados financeiros que os empresários e diversos tipos investidores "produtivos" encontram o financiamento para transformar ideias em negócios, possibilitando a inovação tecnológica e outros tipos de modernizações, ponto de partida para a "destruição criadora" que caracteriza o funcionamento capitalista [2] , poderá imaginar-se a profunda perturbação operada na economia pelo terramoto que percorre o sistema financeiro mundial, sistema que, aliás, tem um papel vital também para as famílias, para os estados nacionais e para os diversos blocos político-económicos regionais existentes no mundo.
Dado que o mercado imobiliário está muito relacionado com o solo (espaço físico no território), que é um bem vital e imprescindível para a vida humana – espaço para habitar, trabalhar e socializar – e que já não se "faz", correlaciona-o com uma oferta rígida, determinando-lhe a sua incontornável natureza oligopolista e insusceptível de ser liberalizada [3] .
Não deixa de ser extraordinário verificar que, na actualidade, e já desde algumas décadas, os mais radicais herdeiros desta escola não acolham as ideias propostas, com todo o fundamento, pelos seus progenitores ideológicos.
Ao pôr o solo – e não a construção civil como alguns erradamente referem - ao serviço desregulado da dupla especulação imobiliário-financeira, exerce-se, por acréscimo, uma pressão inusitada sobre factores ambientais estratégicos como, por exemplo, o ciclo da água (impermeabilização) e sobre a composição da atmosfera (poluição devida ao crescente parque automóvel), entre outros.
Na nossa abordagem focaremos com maior pormenorização os casos da crise do sub-prime (EUA) e a bolha do Dubai, para, através deles, poder ilustrar de modo mais objectivo os mecanismos financeiros e imobiliários mais comuns neste tipo de eventos.
II- Crises, "crashs" e bolhas com expressão mundial [4]
Quase desde os seus primórdios mercantilistas que o sistema económico capitalista apresenta, a par da grande pujança reformadora e uma notória capacidade de recuperação, que são a sua imagem de marca para além da exploração da força de trabalho e dos recursos naturais, uma marcada tendência para cair em crises cíclicas, pontuadas por bolhas e crashs de diversos tipos que, aparentemente, têm vindo a ser mais frequentes nas últimas duas décadas, e com um impacte crescente na economia real. O capitalismo, sabe-se, nunca consegue "parar para pensar" e por isso marcha aos solavancos, crescendo e contraindo-se violentamente. Também se poderá dizer que é bipolar, o que não lhe augura nada de bom, para ele e para quem com ele vive, ou seja, na prática todos nós.
Tem assento histórico firmado essa sucessão e, sem qualquer preocupação de exaurir o tema, apresenta-se uma listagem com os mais significativos eventos ocorridos desde os primeiros tempos do capitalismo comercial, destacando-se na série, a primeira das bolhas - a dos bolbos de tulipas (verdadeira antecipação do mercado de futuros) - e aquela que foi a primeira crise financeiro-imobiliária, que terá ocorrido na Florida, EUA, ainda antes do crash de 1929:
1- Bolha das Tulipas (bolbos). Holanda (1636-1637).
2- A crise dos Mares do Sul (The South Sea Company) - Grã-bretanha (1711-1720)
3- Mississippi Company (1720) - EUA
4- Railway Mania (1840s) - Ferroviária Grã-Bretanha
5- Bolha imobiliária da Florida. EUA (1926) - Primeira bolha imobiliária americana.
6- Grande bolha americana (1922-1929) – Resultou na crise (crash) de 1929
7- The Nifty Fifty American stocks of the late 1960s and early 1970s – Terminou com a crise do petróleo
8- Poseidon bubble (1970) - Especulação de minerais, Austrália
9- Sports cards and comic books in the 1980s and early 1990s
10- Japanese asset price bubble (1980s) - Bolha japonesa
11- 1997 Asian Financial Crisis (1997) - Bolha dos tigres asiáticos.
12- The Dot-com bubble (1995-2000) - Bolha das empresas de electrónica NASDAQ.
13- Real estate bubble - Inicio da bolha imobiliária americana (2000)
14- Australian first home buyer (FHB) property bubble (2000 a 2010 os preços das casas não pararam de crescer) - Bolha imobiliária Austrália
15- British property bubble (até 2006) - Bolha imobiliária Grã-Bretanha
16- Irish property bubble (até 2006) - Bolha imobiliária Irlanda
17- United States housing bubble (até 2007) – Crise do sub-prime nos EUA
18- Spanish property bubble (até 2006) - Bolha imobiliária Espanha
19- China stock and property bubble (até 2007) - Bolha imobiliária e de acções China
20 Romanian property bubble (até 2008) - Bolha imobiliária Roménia
21- Uranium bubble of 2007 - Bolha do Urânio
22- Commodity bubble (Até 2008) - Bolha das comodites.
23- Crise europeia: Grécia, Portugal e Espanha (a partir de 2010)
III- Crises e bolhas financeiro-imobiliárias
III.1- Aspectos gerais comuns às crises do sub-prime (EUA) e do Dubai
III.1.1 - EUA
Se as bolhas especulativas relacionadas com as empresas de novas tecnologias de informação e comunicação ( dotcoms ) ocorridas na década de noventa já tinham deixado um sinal de que algo ia mal no sistema económico capitalista emergente da queda do Muro de Berlim, a bolha da habitação nos primeiros anos do século XXI e o enorme desequilíbrio externo das economias americana e de muitos países da União Europeia, para além dos excedentes das economias emergentes, não podiam deixar de sugerir aos economistas e decisores de política económica a inevitabilidade de uma recessão ou, pelo menos, de uma crise de certa monta na economia mundial.
De facto, apesar da muito citada "impossibilidade" de prever o futuro que caracterizaria as ciências sociais (Karl Popper), era já certo para muitos interventores em conferências económicas e universitárias realizadas logo após a viragem do século, a inevitabilidade de crise mundial, embora isso não pudesse ser assumido pelos líderes políticos e ideológicos, bem assim como pelos responsáveis pelas políticas financeiras centrais.
A crise financeira de 2007 é o exemplo mais recente, e um dos mais notáveis da história do capitalismo, da conhecida dinâmica de expansão e contracção das economias, motivada pelo crescimento excessivo do endividamento (Alexandre et all, 2009:15)
Krugman, por exemplo, diz que, pela primeira vez desde 1917, vivemos num mundo em que "os direitos de propriedade e os mercados livres são encarados como princípios fundamentais e não como expedientes mesquinhos; os aspectos desagradáveis da economia de mercado – a desigualdade, o desemprego, a injustiça – são aceites como contingências da vida" (Krugman, 2009: 20), acrescentando que Greenspan, embora tenha advertido contra a exuberância excessiva "nunca fez grande coisa para a evitar". De facto, o ex-presidente da FED usou a expressão "exuberância irracional" num discurso de 1996 em que aludiu, sem chegar a dizê-lo explicitamente, à existência duma bolha de especulação nos preços das acções (Krugman, 2009:143).
A crise de 2007 marca, não só o fim da Grande Moderação (período em que houve, nos EUA, uma longa expansão económica 1984-2007), mas também a queda de Greenspan do pedestal no qual tinha sido colocado (Alexandre et all, 2009:20).
A propósito da suposta capacidade das instituições e Governos estabilizarem as economias através de políticas orçamentais e monetárias, Greenspan mencionou em diversas ocasiões a importância da "resiliência" da economia americana, isto é, da sua capacidade para se adaptar a novas circunstâncias e reagir a acontecimentos adversos. Por isso, "embalados pelas ideias da Nova Economia e da resiliência, alguns economistas e políticos, incluindo Gordon Brown, referiram-se aos ciclos económicos como pertencentes ao passado. Já nos anos vinte e oitenta a mesma ilusão tinha existido" (Alexandre et all, 2009:33)
É interessante constatar como, mesmo nesse período da Grande Moderação nos EUA, ocorreram várias crises financeiras e económicas, como foram, por exemplo:
Crash na Bolsa Wall Street, 1987;
Falência de instituições de crédito hipotecário Savings and Loans nos EUA, 1989-91;
Queda abrupta do índice bolsa e preços habitação Japão, 1990;
Crise Sistema Monetário Europeu 1992-93;
Crise da Dívida México, 1994-95;
Crise Cambial Asiática 1997-98;
Crise da dívida Rússia e falência do mega-fundo Long Term Capital Managment 1998;
Crise bolsista das dot.com 2000-01;
Crise na Argentina em 2001-02.
Em todos estes casos a economia dos EUA e a generalidade das economias dos países capitalistas mais avançados, reagiu às dificuldades e, mais ou menos rapidamente, retomou a via do crescimento "normal". Talvez com a excepção do Japão que, de certa forma, ainda hoje não se recompôs completamente.
A presente crise mundial, iniciada formalmente em Agosto de 2007, teve a sua origem na conjugação de políticas de crédito hipotecário muito facilitadas, com a direcção tomada pelo mercado da habitação dos EUA, cujos preços mantiveram uma forte tendência crescente nos anos anteriores à crise, indiferentes aos altos e baixos dos índices bolsistas, até começarem a cair em 2006.
Diz-se que os economistas desconfiavam há muito – desde antes de 2007 – da existência duma bolha no mercado da habitação (Alexandre et all, 2009:52).
Veja-se, por exemplo, o que disse Alan Greenspan, no discurso feito durante a Convenção Anual da American Bankers Association, em 26 de Setembro de 2005:
"Ao longo dos últimos anos, muita atenção tem sido dedicada ao crescente número de alternativas disponíveis no crédito hipotecário (...). Estes produtos podem causar alguma preocupação, tanto porque expõem os devedores a maior risco (...) como porque são vistos como instrumentos que permitem que devedores com poucas qualificações e altamente endividados comprem habitações a preços inflacionados. É encorajador saber que, apesar do rápido crescimento do crédito há habitação, apenas uma pequena fracção das famílias apresenta rácios dívida/ valor da habitação superiores a 90%. Assim, a larga maioria dos proprietários tem uma almofada considerável, que lhes permitirá absorver um potencial decréscimo dos preços da habitação".

Numa análise realizada por Krugman mostrou-se o período temporal e a dimensão das duas bolhas especulativas, a do mercado de acções e a do mercado imobiliário.
Diz-nos aquele autor que analisando gráficos com duas funções: o quociente dos preços das acções em relação aos rendimentos das empresas, um indicador comummente usado para saber se os preços das acções foram razoavelmente estabelecidos e o quociente da média de preços das casas nos EUA em relação à média das rendas, expresso como índice, com base em 1987 igual a 100 (Krugman, 2009:145), se podia concluir, claramente, pela existência de uma bolha de activos nos anos 90, seguida da bolha do imobiliário na década seguinte.
Krugman escreve ainda que, "no cômputo geral, os preços da habitação nunca chegaram a afastar-se realmente das normas históricas, como aconteceu com os preços das acções", afirmação que não acompanhamos porque, de facto os aumentos de cerca de 200% das casas na Florida, San Diego, Washington, etc, não se deveu a um incremento proporcional dos custos de construção. Mais adiante, aliás, o Prémio Nobel acrescenta "Mas isto é enganador em vários aspectos. Primeiro, o sector imobiliário é um negócio mais amplo que o mercado da acções, sobretudo para as famílias da classe média, cujas habitações são geralmente o seu principal activo. Segundo, a expansão dos preços de habitação era desigual: na parte central dos EUA, onde a terra é abundante, os preços da habitação nunca subiram muito mais do que a inflação geral, mas em áreas costeiras, sobretudo na Florida, os preços ultrapassaram o seu quociente normal em relação às rendas. Afinal, o sistema financeiro provou ser bastante mais vulnerável aos efeitos secundários do declínio dos preços de habitação do que em relação aos efeitos secundários da queda das acções (Krugman, 2009:146).
Se analisarmos uma breve cronologia da crise financeiro-imobiliária "americana" [5] ou Bolha do Sub-prime, verificamos que, muito antes de Agosto de 2007, já havia sinais evidentes de que algo de muito errado estaria a acontecer. Contudo o jogo continuou até estoirar a bolha.:
2007
Fevereiro
(8) HSBC anuncia queda dos lucros devido ao aumento de provisões e 10 000 milhões USD para créditos imobiliários duvidosos;
(27) Freddie Mac avisa que não continuará a comprar as hipotecas de risco mais elevado ou de títulos feitos a partir destas hipotecas;
Abril
(2) O New Century Financial (segunda maior instituição subprime) despede metade dos trabalhadores, ou seja, 3200.
Junho As agências de rating Standard and Poor's e a Moody's reclassificam para baixo 100 obrigações baseadas em hipotecas.
Bear Stearns, o 5º banco de investimento norte-americano, fecha dois fundos de investimento e dois gestores são acusados de fraude.
Julho
A Standar and Poor's reclassifica em baixa 612 obrigações baseadas em hipotecas.
Agosto
Morgan Stanley alerta para a possibilidade duma crise na banca espanhola.
American Home Mortage, a 10ª instituição de crédito hipotecária, pede protecção ao abrigo lei falências.
BNP Paribas suspende os pagamentos de 3 fundos de investimento, que tinham perdido 20% nas duas semanas anteriores.
O BCE colocou no mercado monetário 95 000 milhões de euros e nos dias seguintes mais 108 000 milhões.
As autoridades americanas informaram publicamente que colocarão no mercado monetário a liquidez que for necessário.
Setembro
Governo autoriza o Banco de Inglaterra a conceder crédito ao Northern Rock, o 5º banco de crédito hipotecário.
Corrida aos depósitos no Northern Rock a primeira de 1866.
FED reduz a taxa de juro para 4,75 %.
Banco de Inglaterra vai colocar 10 000 milhões de libras no mercado monetário.
Outubro
UBS é o primeiro do grupo dos 5 maiores bancos mundiais a anunciar perdas devido ao afundamento do mercado do crédito subprime nos EUA.
Novembro
Quatro cidades norueguesas entram em crise financeira com perdas equivalentes a 64 milhões de coroas de obrigações criadas pelo Citigroup.
Dezembro
Bush apresenta plano para ajudar cerca de 1,2 milhões de famílias em dificuldades devido às hipotecas.
A FED reduz a taxa de juro de 4,75 para 4,25%
III.1.2- Dubai
O Dubai é um dos sete emirados e a cidade mais populosa dos Emirados Árabes Unidos (EAU), com aproximadamente 2.262.000 habitantes.
As receitas do Dubai são provenientes do turismo, comércio , sector imobiliário e serviços financeiros e é interessante verificar que o petróleo e gás natural contribuem com menos de 6% (2006) do PIB de US$37 mil milhões da economia de Dubai (2005), ao contrário, por exemplo, do Abu Dhabi, que tem uma receita petrolífera muito maior.
Durante anos considerada a "jóia da coroa" dos EAU, o Dubai, suportado numa significativa liquidez acumulada durante alguns anos, alavancou um projecto para tornar o pequeno enclave num paraíso de especulação financeira/imobiliária.
Contudo, de repente, o conglomerado Dubai World declarou, em Novembro de 2009, uma moratória sobre a sua dívida de US$ 59 mil milhões por seis meses (até Maio 2010).
A Dubai World, ´holding´ controlada pelo governo (Sultão Bin Sulayem), responsável pela transformação de Dubai num centro financeiro e comercial regional, acumulou dívidas estimadas em US$ 59 mil milhões.
Na fase de lançamento deste projecto financeiro-imobiliário, a administração adoptou como lema "O sol nunca se põe em Dubai World".
Entre os principais credores da Dubai World, estão o Barclays, BNP Paribas, Deutsche Bank, HSBC, Citibank, Goldman Sachs e Mitsubishi Financial e, por essa razão, o problema do Dubai, tomou expressão mundial.
O excepcional crescimento da actividade comercial e financeira, derivada da intensa exploração petrolífera desde finais do anos sessenta do século XX, resultou na criação de um importante e poderoso sector bancário formado por uma rede de instituições nacionais e estrangeiras, que se encarregaram de gerir a enorme liquidez. A expansão econômica propiciou, também, grande desenvolvimento no sector de transportes, tanto terrestre como aéreo (aeroporto de Dubai) e marítimo (portos de Abu Dhabi e Dubai).

Para apreciar com alguma profundidade a chamada Bolha do Dubai, sigamos alguns das suas últimas fases:
Ainda em Janeiro de 2008 o Dubai era uma terra cheia de projectos grandiosos. Poucas cidades no mundo podiam igualar o número de arranha-céus e outras enormes edificações (mais de 80 unidades com mais de 150 metros de altura estavam concluídos ou em construção).
Shoppings e centros comerciais nasciam como cogumelos – o Dubai Mall, o maior centro comercial do mundo, ainda estava em construção. Os hotéis estavam repletos de turistas; as taxas de ocupação sempre estavam acima dos 80% [6] ;
O sentimento de mercado era o de que os preços só podiam subir, e sempre. A economia de Dubai era vista como sólida e robusta, e era isso que se vendia ao mundo. Em Setembro de 2008 tudo ainda permanecia inabalável, e até mesmo celebridades como o tenista Boris Becker e o actor indiano Shah Rukh estavam anunciando projectos estimados em milhares de milhões de dólares. O Índice de Preços Imobiliários havia atingido seu pico, com um aumento de 116% [7]desde o primeiro trimestre de 2007.
Apesar de as taxas de desocupação dos imóveis serem altas e visíveis em várias áreas, novos projectos residenciais e comerciais surgiam diariamente com promessas de ainda mais espaços residenciais e comerciais. Mas se havia tantos escritórios e apartamentos vazios, por que razão as empresas financeiro-imobiliária) ainda continuavam construindo?
O principal motivo das compras imobiliárias era, por um lado, o lucro rápido – adquirir e revender – por outro lado havia o subjacente interesse financeiro especulativo (titularização dos créditos hipotecários). Obviamente, tal padrão possui muita semelhança com a derrocada imobiliária dos EUA.
No início de 2008 a Nakheel, grande investidora responsável pelo projecto das Palm Islands (ilhas com a forma de palmeiras) anunciou que iria construir uma "torre com mais de um quilómetro de altura".
Simbolicamente, o boom económico de Dubai atingiu seu ponto mais alto em 30 de Novembro de 2008, no lançamento do hotel Atlantis, um marco localizado na ponta da Palmeira Jumeirah, que foi a primeira palmeira do projecto.
É sempre difícil identificar qual foi precisamente o evento que causou a reacção em cadeia que levou o "mercado" a ter de lidar com a realidade.
Parece que a decisão da Nakheel de demitir 500 empregados a fim de lidar com "planos empresariais de curto prazo e se adaptar ao actual ambiente global" foi um dos eventos que precipitou tudo. Isso ocorreu alguns dias após a inauguração do hotel Atlantis.
No dia seguinte, a construção da Trump Tower – um projecto luxuoso na Palmeira Jumeirah – foi suspensa, suscitando ainda mais preocupações de que a festa de facto havia chegado ao fim.
Esses eventos geraram enormes especulações entre todos os agentes envolvidos no boom da construção civil. Outros projectos foram colocados em espera, suspensos ou adiados. Isso gerou novas demissões.
O fluxo do dinheiro repentinamente secou. As grandes empresas bloquearam pagamentos.
O Índice de Preços Imobiliários no final de 2008 havia declinado 8% em relação ao trimestre anterior. No primeiro trimestre do ano seguinte ele caíu mais 41%, caindo mais 9% até Julho.
Durante 2009, o sentimento em toda a comunidade empresarial e financeira era de receio e desolação. O Dubai World, o conglomerado do qual a Nakheel faz parte, veio finalmente a público declarar que precisava suspender o pagamento de suas dívidas até 30 de Maio de 2010.
A descrição saborosa e pedagógica que se acabou de registar de forma muito sintética [8] , vem, ela própria, atestar que a falsa expansão económica de Dubai, a sua prosperidade fictícia, se baseou, como no caso americano, na ilusão gerada pelo crédito barato. Tudo se fundamentou na ideia errónea de que a expansão do crédito gera riqueza – que dinheiro é riqueza! Depois, tratou-se de aplicar um conjunto de sofisticados instrumentos de "engenharia financeira", que embalaram produtos atraentes, mas tóxicos, para os vender um pouco por todo o mundo.
Dizer, aliás, que, tal como no caso americano, o facto de se tornar fácil a obtenção de crédito por parte dos compradores/investidores de casas no Dubai, isso não era devido a qualquer tipo de preocupação social, mas apenas porque, com os sofisticados esquemas financeiros difundidos um pouco por todo o mundo, conseguiam (e durante algum tempo conseguiram, de facto) captar mais-valias crescentes, tanto mais que, no Dubai, o crédito atribuído não era, tão intensamente como nos EUA, da classe sub-prime.
Em 2006, os financiamentos hipotecários aumentaram 80,1%. Durante 2007, o aumento foi de 82,1%. Finalmente, 2008 terminou com cerca de 20 mil milhões de dólares de empréstimos adicionais, um crescimento de 122,8% em um ano.
Ora a população dos Emirados Árabes Unidos era de 4,76 milhões no final de 2008 com um aumento aproximado de 280 mil em relação ao ano anterior. Por outro lado, grande da população é formada por trabalhadores braçais (principalmente provenientes da Índia), dos quais a grande maioria reside nos próprios estaleiros de obra. Será razoável concluir que as hipotecas estavam concentradas em poucas mãos estrangeiras e nas classes superiores dos EAU, o que sugere que a procura, de facto, se devia aos interesses financeiros do lado dos investimentos e não à procura por moradias e apartamentos necessários na realidade.
Nesta fase é necessário fazer um ponto de ordem: mas, então, para que não haja especulação e bolhas imobiliário-financeiras, será forçoso que o crédito hipotecário seja caro e difícil de obter? Não será isto indutor de discriminação das camadas sociais mais carecidas? Não implica isto menor investimento e crescimento económico?
Se temos crédito fácil e barato caímos na especulação e nas bolhas. Se o crédito é caro e difícil ficamos com a discriminação social e com o marasmo económico. Não será possível uma solução regulada e intermédia?
Parece, pelo contrário, que a solução mais recorrente do sistema tem sido a dos Ciclos de Expansão-Contracção, como, aliás, já foi defendido em várias teses conhecidas. Mas isto, a confirmar-se, implicará obrigatoriamente os extremos depressivos e explosivos.
IV- Engenharia financeira relacionada com as bolhas imobiliárias
Analisando a abundante bibliografia agora disponível depois do rebentamento da bolha imobiliária americana, é possível identificar aqueles que serão OS DEZ PASSOS FUNDAMENTAIS DO CIRCUITO BANCÁRIO/BOLSISTA ESPECULATIVO, estreitamente relacionados com as bolhas imobiliário-financeiro que vêm eclodindo um pouco por todo o mundo, e que em seguida se explicitam:
No sector financeiro/bancário implementou-se, com grande amplitude, a chamada "titularização" (securitization). O seu criador foi Lewis Ranieri e este método que consiste em transformar créditos hipotecários (e "produtos" congéneres) em títulos vendáveis nos mercados financeiros internacionais, destinou-se no seu início apenas a hipotecas "seguras" de grau Prime. Calcula-se que a invenção cortou 2 pontos percentuais nas taxas de juro para empréstimos hipotecários o que, no início, se mostrava vantajoso para as entidades emprestadoras e para os tomadores de crédito imobiliário.
A titularização consiste, em geral, na criação de títulos negociáveis, conhecidos como Asset-Backed Securities (ABS), representativos dos direitos sobre os fluxos gerados por um conjunto (pool) de activos, por vezes com características pouco convencionais. A titularização serviria para reduzir o nível de risco da operação de crédito bancário.
Um ABS com especial importância no desenrolar da crise iniciada em 2007 foi o designado Mortage-Backed Securities (MBS), que são títulos cujos rendimentos dependem das receitas geradas no futuro por um conjunto de créditos à habitação
O Banco provedor do crédito hipotecário começa por criar um Special Purpose Vehicule (SPV), ou Structured Investment Vehicule (SPE), entidade à qual vende um conjunto de créditos à habitação que, entretanto, concedeu a múltiplos compradores de casas. Trata-se de uma empresa financeira, ou Fundo, "exterior" ao banco, mas comandada por ele. Para o banco a vantagem do SPV é que estes créditos deixam de estar no seu balanço e, assim, já não contam para o cálculo dos rácios mínimos de capital; pelo contrário a venda ao SPV permitirá financiar novos créditos. Isto constitui, no fundo, a designada shadow banking , ou seja, actividade bancária oculta. Os SPV não são "entidades" bancárias e, portanto, deixam de estar sujeitas à regulação e supervisão.
Para financiar esta compra, o SPV titulariza os créditos à habitação de acordo com a técnica já referida antes: emite títulos cujo rendimento dependerá dos pagamentos que as pessoas que pediram créditos à habitação vierem a fazer no futuro, colocando-os nas bolsas internacionais.
A inovação financeira prolongou-se através dos MBS – Mortage Backed Securities, dos CMO- Collateralized Mortgage Obligation ou de CDO-Collateralized Debt Obligation . Uma espécie de Obrigações de Divida Garantida( IDG). Estas operações conseguem-se através de operações de junçãode tranches semelhantes de diferentes MBS. Entretanto, criaram-se mesmo os CDO-Squared e posteriormente os CDO ao cubo, etc., numa espécie de pirâmide ou espiral especulativa.
Uma CMO (ou CDO) oferecia quotas nos pagamentos, isto é, nem todas as quotas são iguais. Algumas eram "seniores" e tinham reivindicação prioritária sobre os pagamentos dos credores hipotecários (CDO ou CMO de classe AAA - Prime). Recebiam primeiro. Quando começaram os problemas de liquidez
A capacidade de redução de risco de toda esta espiral de operações – argumento teórico e, até, legal, que lhe estaria nos alicerces - não se confirmou, tendo sido sobrestimada pelas agências de rating, que falharam significativamente em todo o processo ;
A criação de uma outra invenção, o C redit Default Swap (CDS) acabou por ter um efeito contrário ao pretendido. O CDS é uma espécie de seguro contra o eventul incumprimento. A AIG foi, talvez, o maior vendedor de CDS.
Finalmente, em estreita sintonia com toda esta engenharia financeira, os preços das casas iam subindo exponencialmente, não porque houvesse um fundamento económico real para que isso acontecesse, mas tão-somente porque os bancos tinham interesse em actualizarem sucessivamente em alta os "valores" das casas cobertas por hipotecas e, por outro lado, os clientes também eram atraídos para a ratoeira porque conseguiam ver aumentado o "valor" do "seu" património, o que até lhes possibilitava usufruir de crédito para a compra de outros bens de consumo (automóveis, electrodomésticos, etc).
Com a proliferação deste esquema global assistiu-se, de uma forma muito clara nos EUA e, por arraste, em muitos outros países (As taxas de juros nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, foram mantidas artificialmente baixas por muito tempo, seguindo a par e passo cada movimento do FED), a um relaxar dos requisitos para a atribuição de crédito e ao aumento do crédito concedido ao segmento conhecido como sub-prime, que são os empréstimos hipotecários concedidos a pessoas/famílias que não apresentam as características exigidas pelas agências governamentais (REGULADORES) para financiarem esses empréstimos (Segmento Prime).
Tem sido hábito distinguir, ainda, uma terceira categoria, situada entre o Sub-prime e o Prime e designada por Alt-A, com características intermédias.
Particularmente simbólicos são os designados empréstimos "NINJA": No income, No Job and No assets, que se tornaram célebres nos EUA.
A qualidade dos créditos hipotecários passou a ser secundária e o importante passou a ser originar cada vez mais créditos, para os poder titularizar e distribuir por outros investidores.
E como o esquema financeiro por si só não era suficiente para alimentar todo o ciclo, foi necessário construir cada vez mais casas, mesmo que elas não fossem pedidas pela procura real.
Do ponto de vista do circuito financeiro e bancário, poderemos aperceber-nos melhor do funcionamento institucional do esquema especulativo, analisando este esquema, elaborado a partir de elementos recolhidos na Wikipédia e na bibliografia (Mateus, 2009:27):

Alguns autores, que não deviam ser ingénuos ou mal informados, perguntavam-se:
"Mas o que justificou uma bolha no imobiliário? Sabemos por que motivo o preço da habitação começara a subir: as taxas de juro eram muito baixas no início desta década (2000), por razões que explicarei sucintamente, e isso tornou a compra de casas um negócio atractivo. E não há dúvidas que isto justificava alguma da subida dos preços. Não justificava, no entanto, a crença de que todas as regras antigas já não eram aplicáveis. Casas são casas, há muitos anos que os norte-americanos estão habituados a comprar casas com dinheiro emprestado, mas é difícil compreender por que razão, alguém iria acreditar, por volta de 2003, que os princípios básicos desses empréstimos tinham que ser revogados. Sabemos por longa experiência que os compradores de casas não deveriam fazer hipotecas cujos pagamentos não conseguem comportar e que deveriam fazer um pagamento inicial substancial de forma a poderem sustentar uma quebra moderada nos preços das casas e continuar a ter um prémio de risco positivo. As taxas de juro deveriam ter alterado os pagamentos da hipoteca associados a uma dada quantia de empréstimo, e nada mais do que isso. Porém, o que aconteceu de facto foi um abandono completo dos princípios tradicionais" (Krugman, 2009:123).
Lendo isto, parece que estamos numa situação em que se verificaram variados tipos de incúria e incompetência tanto dos agentes financeiros como por parte do cidadão comum. Mas será que as responsabilidades de uns e de outros são equivalentes ou, sequer, proporcionais? Será que se tratou apenas de uma questão ética (ganância) e profissional (incompetência)?
Aparentemente, esta situação deriva em boa medida da designada "Exuberância Irracional" (Shiller, 2000:76) ou, como outro autor propõe, ao "Síndrome do Néscio" (Bes, 2010:97) de famílias que, confrontadas com os preços cada vez mais elevados das casas, decidiram, por um lado, "entrar no mercado", ou seja, no jogo, e por outro lado, deixaram de se preocupar com o pagamento das prestações, porque as casas "valorizariam sempre". A designação inicial da Exuberância irracional coube a Greenspan (1996), como já referimos, mas Shiller aprofundou a questão em 2000 e demonstrou um dos aspectos da "irracionalidade" existente no mercado imobiliário, com o preço das casas a disparar, enquanto o custo da construção se retrai e a evolução demográfica é contida.
Contudo, quando aprofundamos a análise para além aparência, verificamos que, na raiz do problema, está algo de mais amplo e estrutural, passando muito pela enorme pressão "democrática" do sistema, no sentido de que as famílias "invistam na compra de casas" como se tratasse do Monopoly (jogo). Todos conhecemos o tipo de campanha publicitária feita durante vários anos pelos bancos. E, por outro lado, não nos poderemos abstrair do ESPÍRITO do TEMPO.
Tendo em conta que os bancos de investimento e de crédito comercial eram vistos, segundo os critérios de exigência que vinham sendo aplicados no pós-crash de 1929, como entidades rigorosas, competentes e seguras, não se pode deixar de considerar extraordinário que tenham entrado num tal logro global. Poderemos, assim, perguntar se eles estiveram na sua génese ou se foram apanhados numa onda imprevisível criada algures?
Aqui chegados, não será descabido perguntar em que medida a nova ideologia neoliberal campeante, apurada nas cinzas do socialismo derrubado e com os fragmentos do Muro de Berlim, é responsabilizável pelo descalabro. De facto, analisando a presente fase de globalização neoliberal mais profundamente e à luz das características estruturais do capitalismo, somos levados a concluir que a crise estará no próprio código genético do modo de produção dominante, não se devendo todas estas sucessivas bolhas e crashs apenas à mera incompetência de uns quantos profissionais e à ganância de administradores sem princípios éticos.
Atendamos ao seguinte aspecto fundamental: os bancos, fundos e as diversas entidades financeiras, que foram "afectadas pela crise", para além de terem tido o apoio "obrigatório" dos estados e dos bancos centrais, até nem sequer foram as mais afectadas pela dissipação financeira. De facto, segundo o prémio Nobel que vimos citando, "o fim da bolha imobiliária terá provavelmente arrasado cerca de US$8 mil milhões [9] de riqueza quando se fizer a estimativa final. Desse valor, cerca de US$7 mil milhões terão sido perdas dos próprios proprietários das casas e apenas US$1 mil milhões de perdas por parte dos investidores. Por quê ficar obcecado com esses mil milhões? Porque essas perdas desencadearam o colapso do sistema bancário-sombra" (Krugman, 2009: 169).
A preocupação dos bancos não é tanto com o dinheiro dissipado mas, sim, pelo facto de ter terminado o período de validade da Banca-Sombra.
Ou seja, o coração financeiro do sistema estará a ser recuperado à custa da estabilidade e solvência dos estados e do nível de vida dos cidadãos em geral.
V- Considerações Finais
O tema que tratámos neste artigo, necessariamente de uma forma muito parcial e, até, limitada, convoca, no entanto, factores que serão determinantes para o futuro das sociedades humanas: Territórios (recurso solo), Recursos Financeiros, Ambiente, Actividade Económica e Níveis Sociais Relativos.
Poderemos colocar-nos a questão de saber se a crise actual é financeira ou imobiliária (Bingre Amaral;2010) e, muito provavelmente, a resposta é que ela é composta pelas duas vertentes de uma forma indissociável, embora a Crise, à medida que parece confirmar ser estrutural e global, vá assumindo sempre novas dimensões e qualidades que pulsam um pouco por todo o mundo como as erupções sulfurosas num lago de lama vulcânica activa.
Na intercepção dos domínios, financeiro e imobiliário, está um factor central que é o solo.
Os edifícios de habitação, industriais, logísticos e de escritórios que servem, tanto as necessidades reais das sociedades, como os interesses dos especuladores imobiliários, dos especuladores financeiros e dos dois de uma vez, não podem nascer no ar. E o solo é um bem escasso, principalmente nas áreas mais urbanizadas, que já não se "produz" e que, portanto, confere uma natureza muito especial a qualquer comércio que com ele se faça.
Em torno dos diferentes tipos de apropriação do solo já muito se escreveu e teorizou mas, poderá constatar-se, que pouco se avançou nas sociedades actuais geridas pelo sistema capitalista. Mesmo no Portugal pós-25 de Abril e em pleno período revolucionário, com toda a efervescência das nacionalizações e de ocupação de herdades, a legislação sobre a Política de Solos foi sempre abordada de uma forma pífia.
Aliás, a perspectiva como o solo é visto na actualidade neoliberal, é contraditória mesmo com a teorização dos pais do liberalismo, Ricardo, Stuart Mill e, até Walras, que não hesitou em recomendar a nacionalização dos solos….a bem do liberalismo económico.
Parece ser irrefutável que a renda fundiária, tanto faz que seja paga por terra lavradia, por terreno para construção ou por mina, floresta ou águas pesqueiras, é a forma em que se realiza economicamente e valoriza a propriedade fundiária. Além disso, é lá que ficam "reunidas e em confronto as três classes da sociedade moderna – o trabalhador assalariado, o capitalista industrial e o proprietário da terra" (Marx, 2008:828). Ou seja, o autor de O Capital, em sintonia com os autores clássicos, identificava de forma clara o antagonismo de interesses verificado entre o "capitalista" e o "proprietário".
Ora o preço pelo qual é comprado e vendido cada pedaço de terra, dependente dos seus fins (correlacionados com os direitos de propriedade que são criados e garantidos por intervenção pública estatal e/ou autárquica, ou seja, construir, agricultar, explorar os recursos, etc), é função do somatório das rendas anuais expectáveis actualizadas a um determinado período (geralmente largo). Este preço não corresponde a um custo de produção, mais um lucro, porque, salvo nos casos em que houve alguma benfeitoria, o solo é um recurso natural que não custou nada a produzir, sendo, além disso, imperecível e inamovível. Portanto, com os terrenos onde as entidades públicas competentes conferem direitos de construção, fazem os seus proprietários mais-valias "trazidas pelo vento" tanto maiores quanto mais aumentar a especulação, não havendo lugar aos meros lucros económicos.
Por isso, quando ficamos perplexos com os preços a que se vendem certos bens imóveis de habitação – 6500 euros/m2 no Chiado ou 12 000 euros/m2 no novo edifício que substituiu o Hotel Estoril-Sol – é necessário saber que o custo da construção propriamente dita (já com os custos financeiros associados, as amortizações, impostos e taxas, um lucro confortável e, até, uma parcela para o terreno a custo "deste planeta", não ultrapassa, mesmo com altos índices de qualidade, os 1 500 euros/m2! Ou seja, a maior parte do que se paga é para especulação relacionada com o solo e com a paisagem (localização)!
E quando alguém comprava, até há cerca de um ano ou dois anos atrás, um apartamento com 200 m2 numa cidade da Margem Sul, por exemplo, e sendo expectável que tivesse que pagar 300 mil euros, que obtinha através do crédito hipotecário numa entidade bancária portuguesa, é necessário saber que cerca de 100 mil euros do total pedido emprestado serviram para pagar a especulação com o solo associado (num edifício com seis pisos e doze apartamentos, a fracção conotável com cada apartamento serão cerca de 1/12 avos do solo matriz). Ora, se o banco, por sua vez, pediu parte do dinheiro a bancos estrangeiros, é fácil concluir que, uma fracção significativa da dívida externa portuguesa se criou para (…) comprar solo inflacionado português.
Não é difícil demonstrar que o "imobiliário é, e sempre será, um retalho de oligopólio localizado cujos conluios produzem, na prática, o comportamento de monopólio" (Bingre Amaral;2010). Ou seja, à luz dos princípios liberais, o mercado imobiliário funciona como um anti-mercado!
Portanto, adicionar à especulação imobiliária, a especulação financeira, ao nível a que elas chegaram desde o início do novo milénio, é juntar as duas partes sub-críticas de uma carga de urânio enriquecido num receptáculo e não ter barras de grafite para controlar a reacção.
por Demétrio Alves
Junho/2010
Bibliografia
Alexandre, Fernando et all; Crise Financeira Internacional, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009
De Bes, Fernando Trías; O homem que trocou a casa por uma túlipa; editorial Presença, 2010
Krugman, Paul; O regresso da economia da depressão e a Crise Actual; Editorial presença, 2009
Soros, George; O novo paradigma para os mercados financeiros; Almedina2008
Mateus, Abel; A grande Crise Financeira do inicio do século XXI; Bnomics, 2009
Greenspan, Alan; The Age of Turbulence, Alan Lane, 2007
Bingre Amaral, Pedro; Neolibelalismo, um álibi da especulação imobiliária; Maio 2010, Le Monde Diplomátique, Edição Portuguesa
Marx,Karl; O capital, Livro 3,Volume 6; Civilização Brasileira, 2008
Shiller, Robert J. ; Irrational Exuberance, Barnes& Noble, 2000Notas
1- World Economic Outlook de Abril de 2003 (capítulo 2) e idêntico relatório emitido em Setembro de 2002.
2- Joseph Schumpeter (1883-1950)
3- Os autores clássicos do liberalismo, Mill e Ricardo, elegeram o rentismo do Antigo Regime como um dos principais inimigos da própria doutrina liberal e mesmo Léon Walras chegou a propor a "nacionalização do solo".
4- Elaborada com base no cruzamento de dados colhidos na Wikipedia e na bibliografia mencionada.
5- Elementos retirados da bibliografia indicada (Alexandre et all, 2009).
6- "Dubai Retail Snapshot - Second Quarter 2008." Colliers International, UAE, p. 1
7- "House Price Index - Third Quarter 2009." Colliers International, UAE, p.3.
8- Ver trabalho do investigador Fernando Ulrich na análise deste caso, cujas conclusões publicou in SITE "Instituto Ludwig von Mises", a 20 de Dezembro de 2009
9- Milhar de milhões; 1 seguido 9 zeros
Demétrio Alves, deca50@netcabo.pt
Comentários
Enviar um comentário