1 – Os ataques à democracia
A extrema-direita que agora toma abertamente posição
política é mais uma consequência da persistente crise
capitalista e do agudizar das suas contradições. É o
resultado em termos ideológicos de anos de calúnias contra tudo o
que mesmo com leves traços progressistas pusesse em causa
privilégios do grande capital e de paranoia anticomunista. Os que
puseram em prática políticas de direita e neoliberais, contra os
interesses populares e a soberania nacional, andaram chocar o "ovo da
serpente" fascista.
Em nome da "economia de mercado" ou da "democracia liberal"
foi dada liberdade praticamente total ao grande capital, reprimindo os
trabalhadores, atacando o sindicalismo das formas mais soezes, promovendo o
corporativismo da "concertação social" que se pretende
colocar acima do parlamento. Tudo isto evidencia a tendência do
neoliberalismo se encaminhar para formas fascizantes.
A linguagem do ódio, da intolerância, do racismo visando outros
povos e emigrantes – proletariado fugindo à miséria e ao
caos provocados por ações diretas ou apoiadas por países da
NATO – sugestionam camadas populares despolitizadas e frustradas devido
às políticas a favor da oligarquia.
Os pruridos democráticos do chamado centro caem pelo apoio ou
silenciamento perante os neofascismos que se desenvolvem na UE e na
Ucrânia, com glorificação de ex-nazistas e
colaboracionistas, a supressão de elementares regras
democráticas, disseminação do racismo e xenofobia. Caem
com o reconhecimento de Guaidó e de outros golpistas na América
Latina, caem enfim com o alinhamento com a agenda conspirativa e belicista do
imperialismo.
Na ONU, os EUA e a Ucrânia são os únicos a oporem-se a uma
resolução da Assembleia Geral, adotada anualmente para
"Combater a glorificação do nazismo, neonazismo e outras
práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
relacionada".
Determinadas ONG, não passam de extensões de serviços
secretos, assumindo formas legais, alegadamente defensoras da democracia e
direitos humanos. O seu objetivo é a desestabilização
social e a fabricação de bem pagos "democratas" ao seu
serviço, dramatizando quaisquer problemas existentes ou ficcionados,
fazendo campanha contra despesas sociais do Estado, anunciando cataclismos que
resultariam de medidas socializantes ou consideradas como tal.
Uma das ONG mais relevantes nestes processos de colocar o poder ao
serviço da oligarquia e do imperialismo é a NED (National
Endowment for Democracy). Esta Fundação subsidia
organizações que distribuem dinheiro no exterior,
disponível para associações e membros da classe dominante,
partidos da direita, social-democratas e mesmo formações que se
pretendem de esquerda.
As consequências destas atividades, são visíveis nos dramas
das "revoluções coloridas" colocando no poder
verdadeiros ditadores mascarados de democratas, alinhados com à
extrema-direita, como no golpe fascista da Ucrânia. As
intervenções militares, no Iraque, Afeganistão,
Líbia, Síria, Somália, Iémen, alegadamente para
impor a democracia provocaram milhões de vítimas, permitiram a
consolidação de organizações terroristas e o drama
dos refugiados.
O controlo da opinião pública para apoiar ou não reagir
perante estas situações é garantido pelos principais
media, veiculando falsas notícias e calúnias com que o
império procura diabolizar os que não se lhe submetem como se
fosse verdade absoluta e comprovada, abdicando de confirmar factos ou veicular
o contraditório, tornando-se assim agentes da conspiração
e da subversão. Além disto, nas redes sociais proliferam
pro-fascistas difundindo o ódio, deturpando, mentindo sem
escrúpulos, atacando a democracia e os democratas.
A CIA controla os principais media dos EUA desde 1950. Os media não
fornecem notícias, fornecem explicações de acordo com a
oligarquia, garantindo que notícias reais não interferem nos seus
objetivos. O livro
Jornalistas comprados: Como os políticos, os serviços secretos
e a alta finança dirigem os meios de comunicação social
alemães
(
Gekaufte Journalisten
) do jornalista alemão Udo Ulfkotte mostra que a CIA
também controla a imprensa europeia.
[1]
O financiamento de candidatos favoráveis aos interesses da oligarquia
constitui também um grave ataque à democracia. As
eleições nos EUA são disto um gritante exemplo: em 2016 os
bancos despenderam 2 mil milhões de dólares a favor dos
"seus" candidatos. Em 2020 mais de 3 mil milhões.
[2]
2 – A "democracia" oligárquica
Sob o domínio da oligarquia a
democracia assemelha-se a
O retrato de Dorian Gray
. Tal como a oligarquia, Dorian persegue objetivos amorais, egoístas,
porém a sua imagem
regista todo mal que pratica. Também a degradação
ética e a corrupção das práticas
oligárquicas agravam as suas contradições e crises.
Sem qualquer espécie de escrúpulos as elites do dinheiro
não hesitam em atacar pela calúnia e pela
perseguição quem possa por em perigo os seus privilégios.
No Reino Unido foi levado a cabo durante anos uma
campanha para destruir o ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn que se
propunha reverter o neoliberalismo propondo algumas
nacionalizações e fazer regressar o partido à sua matriz
tradicional sindicalista.
A universidade de
Princeton publicou um estudo
, evidenciando que os Estados Unidos funcionam muito mais como uma oligarquia do
que como uma democracia. Um sistema que, como as recentes
eleições comprovam, de tão corrupto apodreceu.
Para ser considerado democrático pela chamada "comunidade
internacional" (EUA, UE e aliados) basta que um povo
"pratique a democracia à maneira dos EUA e não tenha nada
melhor para fazer do que aceitar a liderança de Washington". (de
Gaulle, Memoires de Guerre III, Livre de Poche, p. 245).
A democracia obtida desta forma é definida pelos interesses
imperialistas e oligárquicos, fundamentalmente dos EUA, fazendo uso dos
instrumentos ao seu serviço como o FMI, BM, NATO. O resultado são
obscenas desigualdades e clara disfuncionalidade social.
Nos EUA
apenas três homens
(B. Gates, J. Bezos, W. Buffet)
possuem tanto como metade da população.
A camada oligárquica detém 79% da riqueza do país
. A nível mundial os
26 mais ricos
supostamente valem tanto quanto a metade de todas as outras, ou 3,8 mil
milhões de pessoas. E isto num mundo em que o rendimento da metade mais
pobre da humanidade continua diminuindo.
A outra face desta moeda é a pobreza, no país dito "mais
rico do mundo": em 2020, estima-se que 11,9 milhões de
crianças, 16,2% do total, vivam abaixo da linha oficial de pobreza; 36%
de todas as crianças vivem em famílias pobres ou "quase
pobres", com rendimentos inferiores a 150% da linha de pobreza.
[3]
Existem 2,3 milhões de presos nos EUA
[4]
, taxa de encarceramento de longe a mais alta do mundo. Segundo o
Washington Post,
1 004 pessoas foram mortas a tiro pela polícia em 2019, o grupo Mapping
Police Violence registou 1 099. Um total de 10 310 960 prisões foram
feitas nos EUA em 2018.
[5]
Sessenta por cento dos presos pertencem a minorias (negros e hispânicos)
[6]
O grande capital controla as relações de produção,
define e impõe a ideologia que justifica o seu domínio sobre o
Estado, sobre a economia, sobre toda a sociedade, sendo os seus desmandos
justificados em nome da "economia". Na UE o lóbi Business
Europe, que reúne Bayer, BMW, Google, Microsoft, Shell, Total, entre
outras, realizou 170 reuniões em três anos com a elite da
Comissão Europeia.
[7]
Os Estados colocam-se de joelhos perante o grande capital, alavancado pelas
privatizações, PPP, subsídios e isenções,
obtendo lucros de monopólio.
3 - A "democracia" contra a soberania popular
A democracia é – ou deveria ser – o governo do povo, pelo
povo, para o povo. A ideia contida nesta frase sofre de uma dificuldade, uma
contradição, é que o "povo", o conjunto dos
cidadãos, é uma entidade dividida em classes sociais com
interesses e poderes distintos, mesmo antagónicos, para além do
que os possa unir numa mesma nação.
Os mecanismos da alienação potenciados pelos media, incluindo a
propaganda do consumismo, são um meio do povo perder o controlo sobre as
instituições democráticas e seus representantes. Isto
explica por que camadas sujeitas à exploração, pobreza e
perda de direitos, votem em forças que promoveram e promovem aquelas
situações. Essas forças alinhadas à extrema direita
conseguem chegar ao poder mentindo, escondendo suas reais
intenções ou com golpes de Estado militares ou jurídicos
(Brasil, Paraguai, Honduras).
A democracia parlamentar formal tem a sua expressão no rotativismo
político de partidos que defendem os mesmos modelos económicos e
sociais, equivalentes a um partido único com várias
facções (o "centro"). É este o sentido do
pluralismo político dependente dos interesses da oligarquia.
Este modelo de democracia é o limite superior considerado
aceitável pelo grande capital. Tudo que vá para além disto
ao nível da democracia social é combatido. Nestas
circunstâncias, se os resultados eleitorais não servirem os seus
interesses, isto é, falhando a "cenoura" da sua democracia,
usa o "pau" do fascismo, de que as "revoluções
coloridas" são uma variante. E se estes processos não se
concretizarem, o "mundo livre" aplica sanções, financia
conspirações e intervenções armadas. Aliás,
mais de 70% das ditaduras existentes no mundo recebem ajuda dos Estados Unidos.
Um recorde estranho para uma nação que justifica as suas
intervenções no estrangeiro visando
"promover a democracia e os direitos humanos"
.
Marx referiu-se ao "cretinismo parlamentar, a forma não de dar
expressão à vontade do povo, mas de bloquear essa vontade".
O parlamentarismo reduzindo a democracia a uma retórica de que o povo
é alheado por representantes que renegam praticamente tudo o que
prometeram antes de eleitos. As formalidades democráticas, não
impediram que os detentores da riqueza se transformassem em novos senhores
feudais aos quais quase tudo é permitido em nome
dos "mercados", de "dar confiança aos investidores"
ou dos "riscos sistémicos".
A UE é um exemplo de como a democracia formal se opõe à
soberania popular. O sistema está montado para que
eleições não possam em alterar o status quo
oligárquico e imperialista ou opor-se aos tratados existentes. Os
exemplos sobram nos referendos (Grécia, Irlanda, França) e
ameaças de sanções a Portugal se uma efetiva
política de esquerda fosse levada a cabo. No PE, 751 deputados –
sem real poder – e 10 mil funcionários, ignoram e são
ignorados pelos cidadãos. Uma imensa burocracia que vive da propaganda,
da chantagem sobre os povos e dos impostos dos cidadãos. Uma democracia
submetida a burocratas que se sobrepõem às políticas dos
governos e se orgulham de não estarem sujeitos a escrutínio
popular.
4 – A democracia, uma conquista sempre precária
A democracia não é uma conquista definitiva, muito menos uma
dádiva, mas uma condição que há que permanentemente
vigiar e mesmo lutar pela sua preservação, tantos são os
seus inimigos e os desvios a que está sujeita. A social-democracia,
tarde e a más horas, por vezes acaba por descobri-lo.
Será preferível falar em democratização, a
democracia como processo, cidadãos participando não apenas em
eleições, mas na gestão da vida coletiva abarcando os
diversos aspetos da vida política, económica e social.
Não há democracias perfeitas, são realizadas por seres
humanos imperfeitos, existem em sociedades imperfeitas, com interesses
contraditórios e têm de se defender dos ataques dos seus inimigos.
Pode dizer-se que os inimigos da democracia são a
corrupção, a indiferença e a estupidez, em tudo o que tem
a ver com o social, fontes da calúnia, do ódio racista e
anticomunista. Tudo isto são consequências de uma democracia
falseada ou inexistente dominada pela burocracia e pelo grande capital.
A democracia também
é profundamente destruída pela concentração da riqueza
, por desigualdades alheias à contribuição de cada um para
a sociedade. Acresce ainda um dos principais inimigos da democracia: o
imperialismo. Governos democráticos respeitando a vontade popular
são submetidos a formas de ingerência e agressão, no
sentido de serem revertidos esses processos.
O imperialismo aprofunda as crises que os povos vão suportando, impede
saídas realmente democráticas, promove a
intimidação, convulsões sociais e
insatisfação generalizada, desagregação social,
empobrecimento e submissão das camadas trabalhadoras. Perante o poder
imperial os cidadãos têm cada vez menos direitos cívicos
(designadamente sindicais) e sociais. O pensamento livre é reprimido.
Recrudescem as crendices, a superstição e as seitas
fundamentalistas. A cultura reflete um profundo declínio, com obras
superficiais que renunciam à crítica social centrando-se no
psicologismo e no drama individual, basicamente cópia de modelos e
êxitos comerciais anteriores.
Tão importante como analisar a forma de governo existente, há que
verificar como são respeitados os desejos, as aspirações
das camadas mais vastas da população. A democracia envolve
subordinar a dinâmica financeira às necessidades do
desenvolvimento, económico e social penalizando o rendimento rentista,
estruturando no domínio público os sectores básicos e
estratégicos.
A democracia tem de se alargar a todos os domínios possíveis da
sociedade: nas funções sociais, direitos laborais nas empresas,
democracia económica. As privatizações opõem-se a
tudo isto. Quem dirige a sociedade são os "interesses
económicos" - a oligarquia e os credores financeiros. A dita
"democracia liberal", eufemismo para oligárquica, é
refém destes agentes.
Uma medida tão evidente como taxar as transações
financeiras e controlar os paraísos fiscais, mesmo não pondo em
causa o sistema capitalista é combatida tenazmente como
"radical", ao mesmo tempo que os países são atacados
pelos défices públicos, precisamente pelos que se aproveitam
deste sistema iníquo.
Em resumo, tudo isto mostra como a via reformista já não pode ser
seriamente considerada – se é que alguma vez o foi. Ao
proletariado, para a superação destas contradições,
resta a via das transformações tal como o marxismo definiu e
preconiza.
O socialismo tem de ser considerado uma livre opção
democrática, concretizada na soberania do Estado e no aprofundamento da
democracia e em todas as suas vertentes: política, económica,
social e cultural. Sem a participação consciente e ativa dos
cidadãos neste sentido, a democracia corre o risco de se tornar uma
ficção política e as diatribes parlamentares não
irem além de uma competição por lugares ao serviço
da oligarquia.
por Daniel Vaz de Carvalho
[*]
A mão invisível do mercado nunca funcionaria sem ter por
detrás um punho escondido. A McDonald's não poderia
prosperar sem
a McDonnell Douglas, fabricante do F15.
Thomas L. Friedman,
A Manifesto for a fast World
New York Times Magazine
, 28/Mar/1999
1 - Paul Craig Roberts
www.informationclearinghouse.info/55571.htm
2 - Cris Hedges,
resistir.info/eua/requiem_americano.html
3 -
The Shame of Child Poverty in the Age of Trump
By Rajan Menon
5 -
www.informationclearinghouse.info/55196.htm
4 -
The US Spends More Than $80 Billion a Year Incarcerating 2.3 Million People
6 -
johnjay.jjay.cuny.edu/nrc/NAS_report_on_incarceration.pdf
7 - Liliane Held-Khawam. Coup d'État planétaire, Bernard Gensane,
www.legrandsoir.info/liliane-held-khawam-coup-d-etat-planetaire.htm
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