A Rússia detém a chave da soberania alemã

Pompeo, candidato a Napoleão. Na semana passada, definimos os passos históricos e geopolíticos necessários para compreender Porque a Rússia está a enlouquecer o ocidente .


Depois, sexta-feira passada, mesmo antes do início do Ano do Touro Metálico, chegou a bomba, lançada com a habitual desenvoltura pelo ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov.

Numa entrevista feita por Vladimir Solovyov, num popular programa de entrevistas – com a transcrição completa publicada pelo Ministério russo das Relações Exteriores – Lavrov disse que Moscovo "tem de estar preparada" para uma possível "rotura com a União Europeia".

A rotura ameaçadora seria a consequência direta das novas sanções da União Europeia, em especial as "que criam riscos para a nossa economia, incluindo nas áreas mais sensíveis." Depois, o argumento decisivo ao estilo de Sun Tzu: "Se queres a paz, prepara-te para a guerra".

Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, posteriormente, tratou de explicar que Lavrov fora citado fora do contexto pelos media e, presumivelmente, havia sido alvo de uma manchete "sensacionalista".

Então, temos de analisar cuidadosamente a resposta matizada de Lavrov a uma pergunta sobre as difíceis relações entre a União Europeia e a Rússia.

"Acreditamos que estamos preparados para isto. Somos vizinhos. Falando coletivamente, são o nosso maior parceiro no comércio e nos investimentos. Muitas empresas da União Europeia funcionam aqui; são centenas ou mesmo milhares de empresas mistas. Quando um negócio beneficia ambas as partes, continuamos. Tenho a certeza de que nos tornámos perfeitamente auto-suficientes na esfera da defesa. Também temos de conseguir a mesma posição na economia para podermos agir em consonância, se voltarmos a ver (e já vimos isso mais de uma vez) que as sanções são impostas numa esfera em que podem criar riscos para a nossa economia, incluindo nas áreas mais sensíveis como o fornecimento de peças sobressalentes. Não queremos ficar isolados do mundo, mas temos de estar preparados para isso. Se quiseres a paz, prepara-te para a guerra".

É óbvio que Lavrov não está a afirmar que a Rússia vai cortar relações unilateralmente com a União Europeia. A bola neste momento está do lado da União Europeia: Moscovo declara que não vai optar por um primeiro ataque para cortar relações com a burocracia de Bruxelas. Isso, em si mesmo, também seria muito diferente de quebrar relações com qualquer um dos 27 estados membros da União Europeia.

O contexto que Peskov mencionou também é claro: Josep Borrell, enviado da União Europeia, depois da sua desastrosa viagem a Moscovo, levantara a questão de que Bruxelas estava a avaliar a imposição de mais sanções. A resposta de Lavrov foi nitidamente destinada a impor alguma sensatez nas cabeças casmurras da Comissão Europeia (EC), chefiadas pela antiga ministra alemã da Defesa, Ursula von der Leyen, conhecida pela sua incompetência, e pela sua política externa do "chefe" Borrell.

No início desta semana, Peskov foi forçado a voltar incisivamente à saga vulcânica: "Lamentavelmente, Bruxelas continua a falar de sanções, e o mesmo faz os EUA com uma persistência maníaca. Isto é uma coisa que nunca aceitaremos. É uma coisa de que não gostamos nada".

Falem-nos dos eufemismos diplomáticos.

Portanto, o cenário está pronto para uma reunião tempestuosa – na melhor das hipóteses – dos ministros dos estrangeiros da União Europeia, na próxima segunda-feira, onde serão discutidas – como não? – possíveis novas sanções. Estas, muito provavelmente, incluirão proibição de viagens e congelamento de ativos de russos selecionados, incluindo pessoas muito próximas do Kremlin, acusadas pela União Europeia de serem responsáveis pela prisão no início deste mês do bloguista de direita e vigarista condenado (uma fraude contra Yves Rocher), Alexei Navalny.

A esmagadora maioria de russos considera Navalny – com uma taxa de popularidade de 2% quando muito – como um trunfo modesto e dispensável da NATO. A reunião da próxima semana abrirá caminho à cimeira de líderes dos estados membros no final de março, onde a União Europeia poderá – e esta é uma palavra operacional – aprovar formalmente novas sanções. Isso exigirá uma decisão unânime dos 27 estados membros da União Europeia.

Neste momento, para além dos habituais suspeitos ostensivamente russofóbicos – da Polónia e dos países bálticos – parece que Bruxelas não está interessada em disparar um tiro nas costas.

Lembrem-se de Leibnitz

A União Europeia obviamente não tem estado a observar como a visão pragmática de Moscovo sobre Bruxelas tem evoluído ao longo dos últimos anos.

O comércio Rússia-União Europeia vai continuar, seja como for. A União Europeia precisa desesperadamente da energia russa; e a Rússia está disposta a vendê-la, petróleo e gás, pipelines e tudo. É apenas um negócio. Se a União Europeia não o quiser – por montes de razões – não há problema. A Rússia está a desenvolver um fluxo regular de negócios, que incluem a energia, por toda a Ásia Oriental.

O sempre relevante Valdai Discussion Club, um grupo de reflexão com sede em Moscovo, por exemplo, está a acompanhar cuidadosamente o aspeto comercial da parceria estratégica Rússia-China.

"A política dos EUA continuará a procurar uma clivagem entre a China e a Rússia. A Europa mantém-se um parceiro importante para Moscovo e para Pequim. A situação na Ásia Central está estável, mas exige a criação de cooperação russo-chinesa."

Putin, pelo seu lado, também ponderou a saga União Europeia-Rússia, que é um subtexto dessa eterna batalha entre a Rússia e o Ocidente: "Logo que começámos a estabilizar, a erguer de novo a cabeça – seguiu-se imediatamente a política de dissuasão… E à medida que ficámos mais fortes, realizámos esta política de dissuasão cada vez mais intensamente."

Na semana passada, apontei para a possibilidade muito remota de um eixo Berlim-Moscovo-Pequim. Peter G. Spengler, jornalista e analista de telecomunicações, num extenso email para mim, em que classificava isso elegantemente como pertencendo ao sentimento de possibilidade de Robert Musil, conforme descrito na sua obra-prima The Man Without Qualities .

Peter Spengler também chamou a atenção para a Novissima Sinica de Leibnitz, especialmente para um ensaio de Manfred von Boetticher sobre Leibnitz e a Rússia , representado pelo Czar Pedro o Grande, em que sublinha que o papel da Rússia como uma ponte entre a Europa e a China.

Embora Leibnitz acabe por nunca encontrar Pedro o Grande, ficamos a saber que "foi sempre o objetivo de Leibnitz encontrar uma aplicação prática para as suas descobertas teóricas. Durante toda a sua vida, ele procurou um "grande potentado" que estivesse aberto às ideias modernas e que o ajudasse a realizar as suas ideias de um mundo melhor. Na época do absolutismo, isto parecia ser a perspetiva mais promissora para um intelectual para quem o progresso da ciência e da tecnologia assim como a melhoria do ensino e das condições económicas eram objetivos urgentes."

"O Czar Pedro, tão poderoso como aberto a todos os novos planos e cuja personalidade o fascinava, devia ser um contacto extraordinariamente interessante para Leibnitz. Como a Europa Ocidental tinha entrado num contacto mais estreito com a China através da missão dos jesuítas e Leibnitz havia reconhecido a importância da cultura milenar chinesa, também via na Rússia o elo natural entre as esferas culturais europeias e chinesas, o centro de uma síntese futura entre o Oriente e o Ocidente. Com as convulsões emergentes no Império Russo, a esperança dele parecia estar a concretizar-se. Cheio de expetativas, acompanhou as mudanças na Rússia, à medida que elas iam aparecendo, com Pedro I."

Contudo, recordar Leibnitz nesta fase é sonhar com esferas celestiais, A prosaica realidade geopolítica é que a União Europeia é uma instituição atlântica – subordinada de facto à NATO. Lavrov pode querer agir como um monge taoista, ou mesmo imitar um Leibnitz, mas isso é difícil quando somos forçados a lidar com um bando de fantoches.

É tudo uma questão de soberania

Os atlantistas fanáticos argumentam que Navalny está diretamente relacionado com Nord Stream 2. Disparate: Navalny foi criado (itálico meu) pelos suspeitos habituais como um aríete para boicotar o Nord Stream 2.

A razão é que o gasoduto consolida Berlim no centro da política energética da União Europeia. E esse será um importante fator na política externa global da União Europeia – com a Alemanha, pelo menos em teoria, a exercer maior autonomia em relação aos EUA.

Aqui vai o segredo "sujo": é tudo uma questão de soberania. Todos os atores geopolíticos e geoeconómicos sabem quem não quer um entendimento mais estreito entre a Alemanha e a Rússia.

Traçado do Nord Stream II.

Agora imaginem uma Alemanha hegemónica na Europa a forjar laços mais estreitos de comércio e de investimentos não apenas com a Rússia mas também com a China (e esse é o outro "segredo" contido no acordo comércio-investimento entre a União Europeia e a China).

Seja quem for que esteja na Casa Branca, nada mais se pode esperar do Departamento de Estado dos EUA, para além do impulso "maníaco" para sanções eternas e acumuladas. A bola está agora no campo de Berlim, muito mais do que no campo do pesadelo eurocrático de Bruxelas, onde a futura prioridade de toda a gente se resume a receber a sua gorda pensão de reforma por completo, isenta de impostos.

A prioridade estratégica de Berlim é mais as exportações – no seio da União Europeia e sobretudo para a Ásia. Os industriais alemães e a classe empresarial sabem exatamente o que o Nord Stream 2 representa: uma soberania alemã cada vez mais assertiva orientando o âmago da União Europeia, o que se traduz numa soberania da União Europeia cada vez maior.

Berlim emitiu recentemente um sinal extremamente significativo com a aprovação garantida da importação da vacina Sputnik.

Será que o sentimento de possibilidade de Musil já está em ação? Ainda é cedo para o dizer. A hegemonia tem desencadeado uma guerra híbrida sem barreiras contra a Rússia desde 2014. Esta guerra pode não ser cinética; por alto, é 70% financeira e 30% uma guerra de informações.

Uma Alemanha mais soberana, mais próxima da Rússia e da China pode ser a gota de água que dê cabo da hegemonia. 

– Uma Alemanha mais soberana, mais próxima da Rússia e da China, poderá ser a gota de água que acabe com a hegemonia dos EUA

por Pepe Escobar [*]

[*] Jornalista e escritor .

O original encontra-se no Asia Times e em thesaker.is/russia-holds-the-key-to-german-sovereignty/
Tradução de Margarida Ferreira.

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