As milícias digitais
As milícias digitais de Bolsonaro e o colapso da democracia
Bolsonaro é o representante de um estado de exceção político e informacional permanente (Foto: Arte Revista CULT.
Não está tudo bem! Diante das forças políticas que emergiram no contexto das eleições de 2018 no Brasil, atropeladas por fake news e uma memética corrosiva, a subcultura da internet está produzindo um estado de exceção digital, que afronta a justiça e as instituições analógicas. Mas o que seria um colapso de proporções e efeitos catastróficos, radicaliza também a potência das redes e de uma democracia digital capaz de calibrar as ditaduras por domínio informacional. Estamos no meio de uma encruzilhada.
As campanhas eleitorais e a democracia representativa como conhecíamos chegaram no seu limite e impasse. Em uma das maiores crises de desinformação em escala global, o Brasil (depois da eleição de Donald Trump nos EUA) protagoniza o que talvez seja o início do fim das democracias tais como conhecemos, com a desconfiguração radical, pós-mídias digitais, do sistema de comunicação, de autoridade, institucionalidade e sociabilidade.
A regressão vingativa dos discursos políticos – encarnado no Brasil em um antipetismo alucinatório –, e as fake news produzidas de forma industrial, põem em xeque uma justiça analógica, mas também reinventam o que conhecíamos como democracia.
Uma mudança dos sistemas de governança que poderia ser desejável, com uma desordem criadora, mas que, no contexto brasileiro, emerge na sua face mais arcaica e sombria: movimentos políticos de novo tipo que configuram novos fascismos e regimes digitais de exceção que tornam o sistema analógico de justiça obsoleto e ineficiente.
Tudo o que fabulamos sobre a potência da cultura digital, sobre a apropriação tecnológica por muitos, se efetuou pelo seu avesso. 2018 é um anti Junho de 2013, ou sua face mais sombria.
Uma desordem informacional e uma desorientação política que longe de nos levar para um novo tipo de governança, mergulhou o Brasil em uma onda de violência nas ruas e nas redes, com ataques, linchamentos reais e simbólicos, pautas regressivas, propagação epidêmica de discursos de ódio e mentiras contras mulheres, negros, grupos LGBTQI, indígenas, quilombolas, ativistas, ONGs, artistas e fazedores de cultura, professores e estudantes universitários, ambientalistas e cientistas, defensores dos direitos – um campo diverso e plural chamado de “esquerda”.
Em oposição a um campo político e cultural, o candidato Jair Bolsonaro é o primeiro resultado de um experimento político baseado em um novo modelo de negócio e governança: as fake news e a memética impulsionadas artificialmente em escala industrial.
Diante de um campo e de valores humanistas, formou-se uma onda de extrema-direita, que produz dogmas e certezas em meio a desorientação informacional, repertórios reduzidos e que forma novos grupos de pertencimento. Estar na onda é uma alegria e uma potência!
“Eu perdi a fé, mas que enfermidade mais terrível”
A desilusão dos “revoltados on line” com o sistema político e a corrupção endêmica e a polarização como estratégia midiática que nutriu a desinformação e o ódio produziu efeitos de discurso, “efeitos de verdade”, que têm consequências reais e imprevisíveis.
Um processo que se acirrou com o impeachment de Dilma Roussef, um linchamento em praça pública protagonizado por atores, mídias corporativas, judiciário, partidos políticos rivais e movimentos de novo tipo, como o MBL, souberam catalisar toda insatisfação para um alvo político: o PT, suas lideranças e programas. Com base em seus erros passam a reverter seus acertos e minar parte das conquistas sociais e políticas públicas das últimas décadas que produziram commons: bem comum.
Antipetismo alucinatório
O processo – as delações diárias da Lava Jato, de forma serial, naturalizando as delações, a devassa da privacidade, um justiçamento midiático travestido de liberdade de expressão e de investigação de fatos – produziu discursos extremistas e autoritários, de baixa institucionalidade e baixo republicanismo.
Jair Bolsonaro é o resultado do antipetismo alucinatório, que em cima da exposição dos mecanismos de funcionamento do sistema político (caixa dois, capitalismo mafioso das empresas, corrupção endêmica) produziu uma aberração política e um experimento comunicacional.
Um meme presidente
Bolsonaro é o representante de um estado de exceção político e informacional permanente na passagem fulminante de democracias representativas para uma governança em tempo real. As mídias digitais como o WhatsApp e suas milícias digitais, e a produção de efeitos de verdade de forma simultaneamente artificial e orgânica, podem ser a nova base de sustentação de uma governança digital de tipo autoritária? A base de Bolsonaro é esse exército de eleitores, trolls, bots e pessoas comuns que acharam na velocidade e viralidade da memética um vetor de propagação de crenças e consensos provisórios.
As milícias digitais produzidas nesse contexto da hiperpolarização e da pós-verdade são o avesso da cultura digital celebratória e utópica das primeiras décadas da internet, da inteligência coletiva e de uma democracia em rede gestada por uma multidão direcionada para o bem comum.
A revolução digital desceu aos infernos e o que emergiu é um cenário de pesadelo com toques de Black mirror, Mad max, Terra em transe e Zorra total. Uma memética que remixa a cultura de massas e seus personagens (os memes já clássicos com Inês Brasil, Carreta Furacão, Xuxa Meneghel, Gretchen, Renata Sorrah/Nazaré), as bonecas Barbie e Susi, tornadas avatares e personagens de uma cena em que Jair Bolsonaro também significa o triunfo dos memes na política.
Bolsonaro, se eleito, seria o Presidente Meme, o Bozo, o Palhaço, o troll, em que a fala tosca e o ideário retrógrado e totalitário é relativizado por parte dos seus seguidores como piada, escracho, deboche, o “Mito”; mas também levada ao pé da letra por outro contingente de eleitores que se apega às verdades e truísmos maniqueístas e simplórios que se identificam com um ideário ultraconservador.
Domínio informacional e fake news: um novo modelo de negócio e de política
Auto profecia anunciada, o cenário das eleições de 2018 foi antecipado pelos players importantes de dentro e de fora do jogo eleitoral. Plataformas como o Facebook e WhatsApp, com base nos escândalos da Cambridge Analytica na eleição de Trump, tem total consciência de como seus negócios de comunicação incidem sobre crenças, comportamentos, humores e sociabilidade.
O que estamos vendo no Brasil são os efeitos dessas “psyops”, operações psicológicas de produção da opinião pública pelo direcionamento de informações: “mudando a cabeça das pessoas não através da persuasão, mas por meio de ‘domínio informacional’, uma série de técnicas que incluem rumores, desinformação e fake news” (…) “brincando com a psicologia de um país inteiro no contexto de um processo democrático”, como explicou de forma didática Christopher Wylie, ex-empresário da Cambridge Analytica sobre os processos que culminaram com a eleição de Trump.
No contexto brasileiro, para além das operações de coleta de dados e perfis psicológicos no Facebook, o uso da rede WhatsApp pelos marqueteiros de Bolsonaro, com apoio de Steve Bannon e financiado por empresários brasileiros produziu uma avalanche, uma onda em seu favor alavancando um inimigo público: o petismo. Disparos de mensagens a níveis industriais turbinaram a combinatória de ceticismo político, fake news e formação da opinião pública com um efeito assustadoramente degradante para a democracia no Brasil.
O contingente que foi bombardeado e se apropriou da memética como linguagem política, com memes panfletos, memes de zombaria, memes de celebração, memes propagadores de dogmas, estímulo a linchamentos virtuais e mentiras. Poderia se formar um senso crítico capaz de destituir e reverter esse mesmo estado de coisas? Como escapar das bolhas de influência e domínio informacionais?
Milícias digitais
A questão é que as fake news e a comunicação massiva automatizada são um novo modelo de negócio e um novo modelo de gerência política. A #LavaZap não é uma piada da internet. A operação de financiamento ilegal de disparos massivos no WhasApp, denunciada em matéria da Folha de S.Paulo do dia 8 de outubro de 2018 que repercutiu em todas as mídias dentro e fora do Brasil, é apenas a ponta de um iceberg de uma governança que flerta com regimes ditatoriais digitais.
As milícias digitais alimentadas por fazendas de fake news em escala industrial surfando na onda antiestablishment só cresceram desde 2013, um contingente de eleitores distópicos que se valem de uma comunicação descentralizada como o WhatsApp para escrachar, zombar, descontruir reputações ou celebrá-las.
Uma extrema direita que mistura uma militância orgânica com cidadãos zumbis, bots e uma opinião pública forjada pela era da comunicação automatizada. A questão é o desequilibro estrutural de um ecossistema político já em decomposição em que as regras de transição para nossos sistemas de governos digitais não foram criadas e nem consensuadas:
“Para alcançar mais eleitores, as campanhas políticas obtiveram neste ano programas capazes de coletar os números de telefones de milhares de brasileiros no Facebook e usá-los para criar grupos e enviar mensagens em massa automaticamente no WhatsApp. A prática viola as regras de uso dos
dados do Facebook e, para alguns especialistas, pode ser considerada crime eleitoral. À BBC News Brasil, o Facebook disse estar investigando o caso, e o WhatsApp disse estar levando a denúncia a sério e tomando medidas legais. O WhatsApp declarou ainda ter banido centenas de milhares de contas suspeitas neste período eleitoral.”
Um novo regime de verdade?
Trata-se de uma nova forma de produção de consenso, por clicks, likes, compartilhamentos, distribuição massiva de memes e mensagens que criam uma comunidade imaginada de iguais, no momento em que as instituições produtoras de consenso entraram em crise de credibilidade: a justiça, a mídia, a escola, os políticos, a própria ciência.
“Como o mundo verdadeiro acabou por se tornar fábula”, reencontramos Nietzsche de Crepúsculo dos Ídolos (1889) quando mostra como verdade “A História de um Erro”: “o mundo verdadeiro é uma ideia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo mais nada – uma ideia que se tornou inútil, supérflua; consequentemente uma ideia refutada; suprimamo-la!”.
O que Nietzsche, Foucault, Derrida, Deleuze e tantos pensadores contemporâneos estão dizendo é que cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade. É que devemos nos perguntar e questionar:
– Quais os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos?
– Quais as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade;
– Qual o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro, com suas leis, enunciados científicos, o que é ou não crime – pois todas são “verdades construídas”.
Os discursos que colocam a verdade em crise não significam que todos os discursos se equivalem. Quais as consequências éticas, subjetivas, em termos de relações de poder, de comportamento e de visão de mundo resultado das crenças? Quantas verdades (e mentiras) somos capazes de suportar?
E a questão que importa: Quais os efeitos daquilo que cremos ser verdadeiro? Pois acreditar que se é racialmente superior, moralmente superior; se acreditarmos em uma distinção e assujeitamento do outro pelas nossas diferenças, nossas verdades se tornarão armas de destruição e morte do outro. É o que estamos vendo nas redes sociais e digitais. Verdades fabricadas e crenças produzidas por domínio informacional que produzem consensos e verdades provisórias ou duradouras com efeitos reais.
A guerrilha memética
No seu livro Kill all normies, Angela Nagle faz uma análise brilhante das guerras culturais on-line analisando a estética e os discursos de plataformas com o 4Chan e o Tumblr para entender a “direita alternativa” (alt-right) que elegeu Trump nos EUA.
No Brasil, o fenômeno Bolsonaro passa por outras subculturas: a zoeira das redes sociais, as batalhas de memes no Twitter, os grupos de WhatsApp produzindo novas formas de pertencimento, desconfigurando hierarquias familiares, os influenciadores, youtubers, a epidemia comunicacional que mexe com a sociabilidade brasileira na veia.
Um exemplo dessa paixão bélico-criativa foia a #primeiraguerramemeal no Twitter em 2016, com trocas ferozes e intensas de um humor altamente inventivo e veloz por tweets e memes que mostrava o jorro criativo dos brasileiros para os combates cognitivos e afetivos.
O problema foi sua transposição catastrófica para um mundo político em dissolução. Paixão bélica, rivalista, que no Brasil se expressa nas torcidas de futebol, nas mortes no trânsito e nas brigas de bares por motivo fútil. Passamos do humor a tragédia em um meme. Da festa a cultura de morte, da cordialidade aos discursos de ódio com a mesma rapidez e euforia.
A partilha do monopólio da violência
Mas para além do humor e das guerras memeais lúdicas, vimos emergir uma onda de violência dos eleitores de Bolsonaro que explicita um desejo primário e assustador: a promessa de Bolsonaro de partilhar o monopólio da violência do Estado com todos os “cidadãos de bem”. Uma espécie de milícia cidadã que fará justiça pelas suas próprias mãos diante do descrédito na política e no Estado.
Daí o imaginário das armas liberadas, do justiçamento sumário, com crianças e adultos empunhando os dedos/armas contra seus inimigos. Metralhar, fuzilar, varrer o inimigo. Um tornar-se fascista, de que falam Gilles Deleuze e Michel Foucault.
“Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico: o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas –, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”, como analisa Foucault em Por uma vida não-fascista, texto belíssimo e inspirador.
Para os “idiotas da objetividade” – como diria Nelson Rodrigues –, que querem reduzir o fascismo às suas características históricas, leiam um pouco de Foucault, ou melhor: ouçam os discursos de Bolsonaro. Porque no momento precisamos esclarecer o que é o fascismo no cotidiano, contra os corpos, contra os sujeitos; os microfascismos do vovô, do titio, dos irmãos, dos primos, dos amigos, da mamãe. Os microfascismos que estão em nós e nas nossas casas.
O fascismo como desejo de poder acendendo todos os ressentimentos de grupos, de classe, as frustações pessoais, o desejo de morte dos que se sentem desorientados e humilhados e aceitam a promessa de assujeitar os outros.
Não se reprima! Não se reprima! Conclama Bolsonaro para seus eleitores. Bolsonaro é o anti-herói que libera os nossos mais baixos e piores instintos. Exatamente como o fenômeno das fakenews, em que as pessoas querem acreditar por mais absurdas e inverossímeis que elas sejam.
Por isso não importa se Bolsonaro está certo ou errado e nem nada do que diz racionalmente. Ele não tem e nem precisa de coerência; ele não precisa entender de economia, nem de educação, nem de saúde e nem ser razoável e nem ter apreço a nada do que é caro à democracia.
Apela para o gozo mais primário e descomplicado: o gozo e o prazer em aniquilar os oponentes, a “esquerdinha”, os “fracos” (negros, mulheres, quilombolas, gays) que precisam de direitos e proteção, vistos como privilégios para fracassados.
O gozo dos que se identificam com a violência real e simbólica dos que oprimem exercem poder. Mesmo que seja um gozo fantasioso e que o fascismo e violência se voltem contra todos. O fenômeno Bolsonaro é uma questão de crença, de liberação boçal e de linguagem.
A pergunta que devemos fazer é quantos eleitores Bolsonaro ganharia sendo “politicamente correto” e quantos eleitores ele ganha quando libera um inconsciente fascista e violento, ativado por testosterona, delírio de onipotência e com a possibilidade, mesmo fantasiosa, da aniquilação dos seus inimigos, promessa de vingança regressiva: “vamos destampar os arquivos de Dilma e do PT e esquecer o passado e a ditadura e olhar para frente”, brada. Leia-se: vamos destruir nossos inimigos!
Bolsonaro alia crenças primárias com o gozo sádico e celebratório: “o ladrão que me assaltou apareceu morto”; prescreve a castração química para estupradores, e vocaliza o triunfo dos impotentes que se sentem injustiçados e oprimidos por uma elite intelectual e política, por um repertório que não dominam, por leis e um aparato jurídico que não fala a língua de ninguém. Goza com sua imunidade parlamentar que o permite vocalizar o invocalizável.
E como não poderia faltar em uma linguagem fanfarrona e ao mesmo tempo paranóica e de suspeição, todas as teorias conspiratórias cabem nos discursos de seus eleitores, sendo a maior de todas a de quer acabar com o voto eletrônico por suspeita de fraude.
As urnas e a própria democracia são o dispositivo de maldade que elegeu as esquerdas nos últimos tempos. Por isso sua ode às ditaduras como o céu político. Pois quem mais elegeu os governos progressistas? Bolsonaro não pode xingar o povo então inventa uma máquina de manipulação: a urna eletrônica fraudada, única força capaz de deter sua vitória.
Com toda a suspeição diante do Estado, dos políticos e da democracia, uma parte dos brasileiros se identifica com o sincericídio tosco e fascista de Bolsonaro: que vocaliza os medos mais primários e traz soluções igualmente simplórias. Estamos diante da “Verdade sufocada” que explode, título do seu livro de cabeceira escrito por um torturador. É a barbárie como libertação!
Governar utilizando o WhatsApp
E se o próximo Presidente do Brasil utilizar redes e grupos de transmissão massivos para governar com base nas suas milícias digitais? Essa é a proposta de Jair Bolsonaro que anunciou que, caso seja eleito, vai transformar o aplicativo em uma de suas principais ferramentas de governo e de comunicação. “Seus assessores e conselheiros gostaram bastante da ideia de criar um programa de governo para distribuir celulares com acesso à internet para a população de baixa renda”
Falam em “Cidadania Digital”, um conceito que inspirou as gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura nas eras Lula e Dilma, e onde participamos ativamente pensando, elaborando e fabulando como a cultura digital e os Pontos de Mídia Livre poderiam alavancar formas participativas e diretas de gestão, transformado os comentários das redes sociais e digitais em uma nova força das democracias comunicacionais.
A extrema-direita digital está a ponto de fazer o download deste programa e disputar o mesmo imaginário, mas de forma pragmática para a produção de uma hegemonia cultural e informacional que inauguraria as ditaduras digitais. A cultura de redes com o sinal inverso: produzir e inundar o cidadão de informações desencontradas, quase nunca verdadeiras, difíceis de checar, transmitidas de forma massiva em multiplataformas de tal forma que “inundem” com fake news, “fatos alternativos”, com um jato de informações incessantes (firehose of falsehood) e repetitivas e sem qualquer compromisso com a consistência ou a veracidade.
A carta de Bolsonaro ao povo brasileiro
Cena final para configurar a governança pelo domínio informacional e as milícias nas redes e nas ruas:
Em vídeo gravado da lavanderia da sua casa, aos gritos para um celular, e endereçado aos manifestantes na Av. Paulista no domingo, 21 de outubro de 2018, a uma semana das eleições presidenciais, Bolsonaro ameaça parlamentares, ativistas, partidos, ONGs, movimentos sociais e mídia.
Nomeia grupos, pessoas, instituições e redes como seus inimigos e diz como irá persegui-los com prisão, exílio e os rigores da lei e do Estado aparelhados. O Estado será usado como extensão de um delírio de onipotência sem limites e sem qualquer sentido republicano. As redes digitais serão suas milícias. Um Estado paramilitar comunicacional.
Ameaças aos seus rivais políticos, regressão vingativa e nenhum sentido de institucionalidade. Essa é a marca de Jair Bolsonaro, o antiestadista que ameaça, às vésperas da eleição, em seu discurso nauseante, destruir todo o sistema e a ecologia política utilizando um discurso fascista, atravessado de metáforas de extermínio e das guerras: como a “limpeza”, varrer do mapa, expulsar do Brasil os “vagabundos”. As “raças” a serem extintas são os “vermelhos”, os movimentos sociais, os defensores dos direitos em todos os campos.
Para a imprensa “vendida” dá os seus pêsames! A parlamentares rivais e ao candidato a presidência Fernando Haddad ameaça com prisão e um “vão apodrecer na cadeia” em um discurso fora de qualquer institucionalidade em que linchamentos políticos sumários antecipam qualquer justiça.“Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil. Vamos varrer do mapa esses bandidos vermelhos”, diz Bolsonaro sem qualquer constrangimento.
O discurso de Bolsonaro gravado em vídeo para a multidão como o discurso de um vencedor das eleições de 2018 não tem mais qualquer mediação ou moderação. É feito para alimentar uma plateia de cidadãos zumbis que urram com as fantasias mais brutais da política tornada regressão vingativa contra os “inimigos” e um petismo alucinatório que alimenta a violência real e simbólica nas redes e nas ruas.
Bolsonaro poderia tomar para si a fala catártica de Paulo Autran em Terra em transe, de Glauber Rocha, filme que encarna toda a potência dos fascismos e seu efeito catártico e salvacionista: “Aprenderão, aprenderão. Dominarei essa terra. Botarei essas histéricas tradições em ordem, pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal dos infernos e chegaremos a uma civilização”.
Não chegaremos a uma democracia no século 21 com Jair Bolsonaro. Mas esse processo que ataca os ossos da democracia representativa como um ácido que destrói e corrói estruturas férreas é uma parte do processo e do expurgo. Que o preço não seja alto demais e que esse horror, esse messianismo e fascismo de novo tipo, essas novas forma dos regimes autoritários, com eleições com tudo, possam ser decisivas para abrir novos caminhos para as democracias no século 21.
Seja qual for o resultado das eleições de 2018, teremos que combater uma extrema direita digital com as armas da democracia, das ruas, das redes; com as tecnologias e aplicativos; com a inteligência popular brasileira.
Muitos movimentos de novo tipo surgiram, mídias e redes com capilaridade e uma linguagem nova (Mídia Ninja, a plataforma 342 capitaneada por artistas e ativistas do mainstream, a primavera das mulheres utilizando as redes contra os machismos e patriarcalismo, a geração tombamento utilizando o consumo e a festa como forma de política, etc) e é essa linguagem pop, esse ativismo mainstream, que com a mesma força usada pelas milícias digitais, podem derrotar o obscurantismo.
Só uma reviravolta nessa onda fascista nos tira da hipnose coletiva, um ativismo potente, uma coragem inclusive intelectual para assumir que o fascismo tomou forma em um projeto político. E é contra esse ódio alucinatório que lutamos!
Contágio!
Essa eleição também desconfigura o campo da comunicação corporativa. Bolsonaro usou transmissões ao vivo no Facebook, um canal no Youtube e o impulsionamento de memes e fake news em redes gigantescas e descentralizadas criadas no WhatsApp.
Avalanches de fake news, memes, teorias estapafúrdias, crenças, teorias conspiratórias, produção de medo, histeria, mas também contranarrativas, resistências e esperanças serão despejadas em uma corrente sanguínea que já começou a produzir anticorpos.
As eleições de 2018 serão decididas por contágio e onda. Um modo epidêmico de fazer política. Sejamos nós também o viral, as forças capazes de produzir ondas, formação pelas mídias, ampliação dos repertórios usando as próprias redes, feitiços capazes de quebrar encantos e produzir novos consensos, disseminar o vírus da democracia e injetar nessa corrente sanguínea os anticorpos contra os fascismos.
24 de outubro de 2018
Ivana Bentes é ensaísta e pesquisadora, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ e ex-secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/nao-matem-a-democracia/
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