O que resta de Auschwitz e os paradoxos da biopolítica em nosso tempo

Livro de Giorgio Agamben inspira debate sobre a biopolítica e a importância do testemunho daqueles homo sacer sobreviventes dos campos de concentração nazista.

Acredito que Agamben situa a ética do testemunho no problemático limiar que se situa entre a superação do ressentimento (a proposta de Nietzsche, que inaugura a ética do século XX) e a exigência moral da impossibilidade do esquecimento. Não se pode querer que Auschwitz retorne eternamente, assim como não se pode mais ignorar que o essencial de Auschwitz não tem cessado de se repetir; por mais que o ressentimento pelo que aconteceu, sua condenação, e a exigência de manter viva a memória do acontecido, se exerça sobre nós como uma demanda ética irrecusável”. A afirmação é do filósofo Oswaldo Giacoia Junior, na entrevista concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line.

De acordo com Giacoia, “as lembranças daquele que dá testemunho são o resgate do indizível, que, no entanto, contém a tenebrosa verdade da biopolítica de nossa sociedade”. Nesse sentido, é fundamental recuperar a figura do muçulmano, contida na obra O que resta de Auschwitz, do filósofo italiano Giorgio Agamben. O livro é objeto de análise nesta quarta-feira, 21-08-2013, das 19h30min às 22h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no evento O pensamento de Giorgio Agamben: técnicas biopolíticas de governo, soberania e exceção, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A atividade é parte integrante do I e II Seminários - XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades.

O campo de concentração, paradoxo político da modernidade, é o “espaço ideal para a realização desse confisco e desse sequestro da vida pelo bio-poder”, complementa Giacoia. “A figura política que concentra e expressa essa situação é o muçulmano, ou o “homo sacer” - que pode ser morto sem que sua morte constitua homicídio ou sacrifício, o banido de toda esfera normativa de proteção, seja ela o direito divino ou humano”.

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Oswaldo Giacoia Junior é também mestre e doutor em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor pela Universidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona no Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, sobretudo em seu pensamento político, publicou, entre outros: Nietzsche – para a Genealogia da Moral (São Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche como psicólogo (2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005) e Nietzsche & para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005). Recentemente publicou Nietzsche versus Kant: Um Debate a respeito de Liberdade, Autonomia e Dever (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012) e Heidegger Urgente. Introdução a um Novo Pensar (São Paulo: Três Estrelas, 2013).

 Confira a entrevista. 


Entrevista especial com Oswaldo Giacoia Junior


IHU On-Line - Qual é a importância do relato e do testemunho pessoal dos sobreviventes do Holocausto em “O que resta de Auschwitz”?

Oswaldo Giacoia Junior - Acredito que a importância do relato tem a ver com o problema do testemunho. O que resta de Auschwitz se inicia com uma reflexão acerca do estatuto e do significado do testemunho, bem como a respeito da questão acerca de quem são as verdadeiras testemunhas. O problema é: quem é o sujeito do testemunho? Acerca de que experiência fala aquele que dá testemunho? Levar a sério essa questão é penetrar no âmago desse livro de Agamben.


IHU On-Line - Nesse contexto, qual é a representatividade do relato de Primo Levi e quais são suas lembranças fundamentais?

Oswaldo Giacoia Junior - As lembranças fundamentais de Primo Levi são aquelas registradas em sua memória e articuladas em seu discurso de sobrevivente; mas, ao escrever sua obra nessa condição, reconheceu o dilema próprio à condição de testemunha, ou seja, de assumir a palavra, paradoxalmente, no lugar daquele que viveu a experiência do terror em toda sua extensão e profundidade, mas que dela não pode testemunhar. Primo Levi reconheceu que os sobreviventes, relativamente aos prisioneiros que passaram pela experiência radical em Auschwitz – a saber, a sobrevivência do homem para além do não-humano, do “resto”, ou limiar indiferenciado entre o homem e o não-homem – prestam testemunho fala por delegação; eles não são as verdadeiras testemunhas, as testemunhas integrais - o ‘muçulmano’ que chegou ao fundo do poço, que viu a Górgona, e que, por causa disso, decaiu da condição de acesso possível à linguagem, e não pode mais falar.


Nesse sentido, as lembranças daquele que dá testemunho são o resgate do indizível, que, no entanto, contém a tenebrosa verdade da biopolítica de nossa sociedade. No sentido de Agamben, essa importância revela também a condição do devir-sujeito, bem como a passagem da natureza à cultura, do inumano à humanidade pelo ter lugar da linguagem.

IHU On-Line - Por outro lado, como podemos compreender a importância do não dito por aqueles que já não conseguiam mais articular a linguagem?

Oswaldo Giacoia Junior - Acredito que Agamben situa a ética do testemunho no problemático limiar que se situa entre a superação do ressentimento (a proposta de Nietzsche, que inaugura a ética do século XX) e a exigência moral da impossibilidade do esquecimento. Não se pode querer que Auschwitz retorne eternamente, assim como não se pode mais ignorar que o essencial de Auschwitz não tem cessado de se repetir; por mais que o ressentimento pelo que aconteceu, sua condenação, e a exigência de manter viva a memória do acontecido, se exerça sobre nós como uma demanda ética irrecusável.


O testemunho é o território de uma nova ética, não prescritiva, não deontológica, mas nem por isso menos radical e exigente. Ao falar sobre o inominável, ao nomear o indizível, pode-se dar voz àqueles que estão privados do acesso à linguagem, aos “homini sacer” de nosso tempo, aos verdadeiros sujeitos da bio-política, que constituem o “resto” a partir do qual é possível um novo começo, uma renovação do quadro categorial da política e uma retomada da noção filosófica de vida boa.

IHU On-Line - Como podemos compreender a condição de estado de exceção à qual os nazistas impuseram os prisioneiros, seres de linguagem e sujeitos éticos reduzidos à vida nua?

Oswaldo Giacoia Junior - Penso que, para Agamben, a vida nua do “homo sacer” é o reverso e a contraface necessária da soberania biopolítica, de que o nazismo é uma formação paroxística. Esse poder soberano só existe e pode funcionar sob a condição de que a vida natural, a vida biológica (blosses Leben) se ofereça como campo de incidência de seus cálculos, decisões e intervenções. Sobre formas qualificadas vida (bios, diferentemente de zoé), dotadas de significação política, e, por causa disso, protegidas por prerrogativas de direitos e garantias jurídicas fundamentais, que fazem parte do status de cidadania, o poder totalitário não pode se exercer sem limites e em toda sua plenitude - ou seja, na intensidade que corresponde à noção de soberania.


Paradigma da modernidade biopolítica


Isso só pode acontecer lá onde a vida foi inteiramente despojada de toda qualificação e significação jurídico-política, reduzida, na condição de mera vida, ao campo indiferenciado de incidência da decisão soberana. O espaço ideal para a realização desse confisco e desse sequestro da vida pelo bio-poder é o campo de concentração. A figura política que concentra e expressa essa situação é o muçulmano, ou o “homo sacer” - que pode ser morto sem que sua morte constitua homicídio ou sacrifício, o banido de toda esfera normativa de proteção, seja ela o direito divino ou humano. A vida nua é a do banido, do sem lei, daquele a quem o ordenamento jurídico-político não concede nenhuma proteção e garantia, ou, como diz paradoxalmente Agamben, a quem o ordenamento se aplica por desaplicação, se exerce por suspensão, e que, portanto, manter cativo por exclusão. Esse é o sentido de exceptio, que deriva de excapere.

Sobre o banido, o poder soberano pode ser exercer em sua plenipotência, como direito de fazer morrer ou deixar viver, ou, como em nossos dias, de fazer viver e deixar morrer. Esse é o macabro cotidiano dos campos, que, para Agamben, constituem o paradigma da modernidade biopolítica.

IHU On-Line - Como pode ser compreendida a figura do “muçulmano” usada por Agamben nessa obra e qual é a origem dessa expressão?

Oswaldo Giacoia Junior - Penso que a primeira parte da pergunta encontra-se contemplada na resposta à questão anterior. Há várias explicações para a origem da denominação muçulmano, empregada nos jargão do campo de concentração de Auschwitz para designar o “morto-vivo”, o prisioneiro que chegou ao limite extremo da sobrevivência, e que perdeu toda vontade de viver, a quem é indiferente tudo e todos que se encontram a seu redor. A associação mais frequente é com o conformismo e fatalismo, que a tudo se submete, incapaz de reação, ou com o homem caramujo, dobrado e concentrado sobre si mesmo. Uma das explicações refere-se à postura inclinada dos muçulmanos em oração, voltados para a cidade de Meca, ou ao movimentar-se constante dos mesmos durante as preces. No entanto, nenhuma dessas explicações, como é natural, encontra atestação unânime. De todo modo, trata-se de uma vida destituída de todo predicado propriamente humano e reduzida ao limite mínimo de um feixe de funções biológicas no limite do esgotamento. Essa figura corresponde àquilo que resta do homem depois de ter sido despojado de todos os predicados que qualificam a condição humana, humanidade; ou seja, refere-se ao extrato meramente biológico e ao conjunto de suas funções em estado de extinção.


IHU On-Line - Em que medida humano, inumano e vida nua se fundem na experiência dos campos de concentração?

Oswaldo Giacoia Junior - O inumano, o muçulmano é uma figura-limite, um paradoxo, uma exceção encarnada. Continua a ser um homem, mesmo desprovido de todos os atributos que distinguem uma existência propriamente humana. Se o campo de concentração é o espaço anômico onde tudo pode acontecer, então o muçulmano, como o que resta do homem no inumano, é suporte e o campo de incidência onde se concentra e decanta a soberania biopolítica, a tomada de posse integral da vida pelos dispositivos de poder. O humano é aquele que pode enunciar e refletir essa experiência de uma voz privada de dicção e articulação, da mera foné. O humano é a transição da voz ao fonema articulado, da physis ao logos, desse tensa unidade dialética entre o que é mera vida animal e a cultura, pela mediação do ter lugar da linguagem. Sobre a base dessa negatividade radical, temos acesso ao processo de devir sujeito, no elemento da linguagem. Essa, a meu ver, é a raiz ontológico-antropológica da ética do testemunho.


IHU On-Line - Qual é a gênese da afirmação de Agamben de que o campo é o paradigma político moderno?

Oswaldo Giacoia Junior - Do texto intitulado Meios sem Fins, destaco duas passagens de Agamben que considero emblemáticas para a resposta a essa pergunta. A primeira diz respeito à diferenciação entre estrutura jurídica dos campos de concentração e a descrição historiográfica desse espaço biopolítico e dos acontecimentos que lá tiveram lugar: “Ao invés de derivar a definição do campo a partir dos acontecimentos que lá se passaram, perguntaremos, antes: o que é um campo; qual é sua estrutura jurídico-política; por que tais acontecimentos puderam se passar ali? Isso nos levará a considerar o campo não como um fato histórico, como uma anomalia que pertence ao passado (mesmo que, em certas circunstâncias, ainda possamos nos deparar com ela), mas, em certa medida, como a Matrix oculta, como o nomos do espaço político, no qual sempre ainda vivemos.”


Zonas de indeterminação


A segunda passagem diz respeito à extensão dessa atualidade: “Se isso é verdade; se, portanto, a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na subsequente criação de um espaço para a vida nua enquanto tal, então teremos que admitir que encontramo-nos potencialmente em presença de um campo sempre que tal estrutura é criada, independentemente da natureza dos crimes ali cometidos, e quaisquer que sejam sua designação e a topografia que lhe é própria. Um campo é, então, tanto o estádio de Bari, no qual, em 1991, a polícia italiana arrebanhou provisoriamente imigrantes albaneses ilegais, antes de serem recambiados para a terra deles, assim como também o velódromo de inverno, que servia aos funcionários de Vichy como lugar de reunião para os judeus, antes que estes fossem entregues aos alemães; assim como também o campo de refugiados na fronteira com a Espanha, nos arredores do qual, em 1939, Antônio Machado veio a morrer, e as zones d’attente nos aeroportos internacionais da França, nos quais são retidos os estrangeiros que postulam o reconhecimento do status de fugitivos.

Em todos esses casos, há um lugar de aparente anódino (como o Hotel Arcades em Roissy), que efetivamente circunscreve um espaço no qual o ordenamento normal está de fato suspenso, e onde não depende da lei se lá são cometidas atrocidades ou não, mas unicamente da decência e do entendimento ético da polícia, que age temporariamente como soberano (por exemplo, durante os quatro dias nos quais os estrangeiros podem ficar retidos na zone d’attente, antes da intervenção dos funcionários da justiça). As também algumas periferias das grandes cidades pós-industriais e as gated communitties nos Estados Unidos da América já se assemelham hoje a campos, nesse sentido, nos quais vida nua e vida política, pelo menos incertos momentos, ingressam numa zona de absoluta indeterminação.”

Creio que podemos acrescentar que o mesmo vale para o que ocorre em nossas prisões, favelas, assim como nas periferias de nossas capitais mais ricas e desenvolvidas.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios éticos após a experiência do nazismo e dos outros totalitarismos do século XX?

Oswaldo Giacoia Junior - Penso que uma das contribuições mais importantes da obra de Agamben, no sentido de uma resposta a esse pergunta consiste na tentativa de repensar em toda sua profundidade e extensão, nos termos de uma arqueo-genealogia, as bases em que se constituiu a modernidade biopolítica e as alternativas que para ela podemos criar. A reflexão filosófica sobre as relações entre ética, direito e política, sobre a moral racional dos direitos humanos passa por essa exigência e pela responsabilidade que ela implica.


IHU On-Line - Há um nexo entre o pensamento de Agamben e o de Hannah Arendt, especificamente sobre a banalidade do mal?

Oswaldo Giacoia Junior - Parece-me que aquilo que Arendt designava como banalidade do mal tem essencialmente a ver com o modo de constituição, a essência e as formas de exercício do poder totalitário. Nesse sentido, como Agamben se esforça por compreender a gênese e a significação do modernidade biopolítica, que vem à luz sob a forma da regulamentação concentracional e totalitária da vida individual e genérica, acredito que esse nexo é de fundamental importância. Tanto assim que Agamben reconhece, já no livro que inaugura o programa filosófico de Homo Sacer (O Poder Soberano e a Vida Nua), que sua obra prossegue nas pegadas de duas linhas de pesquisa originariamente independentes: os estudos de Hannah Arendt sobre o totalitarismo e suas figuras, e as investigações de Michel Foucault sobre a biopolítica.


IHU On-Line - Em que aspectos a solução final dialoga com a biopolítica e qual é a atualidade desse conceito para compreendermos a política hoje?

Oswaldo Giacoia Junior - Numa época em que a filosofia política se aproxima de maneira cada vez mais indiscernível de uma reflexão sobre o direito, o repto de Agamben que serve de insígnia para o livro O Estado de Exceção - quare siletis juristae im munere vestro? - concerne prima facie aos juristas, mas de modo algum se limita a eles, senão que se destina também a todos aqueles que se interessam pelo presente e pelo futuro humano na história.


Entrevista: Márcia Junges


Veja também:
* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011
* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011
* O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011
* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011
* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011
* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011
* A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça. Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-11-2011
* Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 386, de 19-03-2012
* A bios humana: paradoxos éticos e políticos da biopolítica. Revista IHU On-Line, edição 388, de 09-04-2012
* Objetivação e governo da vida humana. Rupturas arqueo-genealógicas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 389, de 23-04-2012
* A economia e suas técnicas de governo biopolítico. Revista IHU On-Line, edição 390, de 30-04-2012
* O advento do social: leituras biopolíticas em Hannah Arendt. Revista IHU On-Line, edição 392, de 14-05-2012
* O trabalho e a biopolítica na perspectiva de Hannah Arendt. Revista IHU On-Line, edição 393, de 21-05-2012
* Biopolitica, estado de excecao e vida nua. Um debate. Revista IHU On-Line, edição 344, de 21-09-2010
* O (des) governo biopolitico da vida humana. Revista IHU On-Line, edição 343, de 13-09-2010

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