Homem, um animal político
Oswaldo Giacoia Junior sustenta que a autoconstituição humana ocorre, segundo a obra de Nietzsche, a partir da passagem da physis ao nomos, da natureza à cultura
Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado
A modelagem moderna transformou o ser humano em “homem”, com compromissos com valores fundamentais da modernidade cultural e política. Trata-se, na verdade, de um longo processo que remete, antes mesmo da modernidade, a conformações morais que vão do platonismo ao cristianismo de acordo com as condições históricas. “O que se encontra em questão é a aventura de autoconstituição do homem como animal político, da passagem da physis ao nomos, da natureza à cultura: Como criar um animal que pode fazer promessas? Esta é, para Nietzsche, a tarefa paradoxal imposta pela natureza a si mesma, com relação ao homem – é o autêntico problema do homem, entendendo-se como genitivo tanto como objetivo quanto subjetivo”, coloca Oswaldo Giacoia Junior, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Portanto, o que parece haver no fundo, como imperativo político, é transformar o ser humano em homem domesticado. “Trata-se da tarefa tornar o ‘animal homem’, até certo ponto, necessário, regular, uniforme, igual entre iguais, constante, e, portanto, confiável, de criar uma praxeologia como pré-história da práxis humana: o autêntico trabalho do homem sobre si mesmo”, explica Giacoia. Nesse sentido, o ressentimento, como categoria sociológica, engendra um travamento da criatividade política. “Pois o ressentimento é um aprisionamento do psiquismo no passado – sobretudo sob a forma da incapacidade de assimilar e transformar uma vivência traumática; com o travamento do esquecimento, o trauma sempre de novo retorna, impedindo a abertura da consciência para novos estados, novas vivências”, destaca.
Oswaldo Giacoia Junior é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, onde também realizou mestrado e doutorado. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e livre docência pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde leciona no Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, é autor de diversas obras, da quais destacamos Nietzsche versus Kant: Um Debate a respeito de Liberdade, Autonomia e Dever (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012) e Heidegger Urgente. Introdução a um Novo Pensar (São Paulo: Três Estrelas, 2013).
Recentemente, Giacoia lançou o livro Agamben por uma Ética da Vergonha e do Resto (São Paulo: N-1 Edições, 2018).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A que o senhor se refere quando menciona acerca de um certo parênteses em Genealogia da Moral?
Oswaldo Giacoia Junior – Refiro-me ao § 27 da terceira dissertação de Para a Genealogia da Moral. No início deste parágrafo, Nietzsche se propõe a deixar de lado as ‘curiosidades e complexidades’ do espírito moderno, para retornar ao problema cardinal da terceira dissertação (“nosso problema”, tal como aparece no texto): o problema da significação do ideal ascético, numa perspectiva que dispensa as considerações sobre o “ontem e o hoje”. É nesse parágrafo que Nietzsche conclui sua interpretação do significado dos ideais ascéticos para a humanidade – e convém notar que no texto o plural é substituído pelo singular, para indicar que não se trata apenas dos ideais ascéticos (pobreza, obediência e castidade), mas do ideal em geral, cuja essência é a ascese, e, por consequência, o niilismo. No parágrafo seguinte (§ 28), o ideal ascético (e o nada que lhe é inerente) vai aparecer como o único sentido que foi oferecido ao homem, em face do sofrimento e da morte como condições da vida. O homem só pode suportar o sofrimento e a morte – radicadas essencialmente em sua finitude – a partir da abertura para ele de uma dimensão de sentido: A falta de sentido da dor, não a própria dor, é a maldição que se estende sobre a vida humana, e da qual o ideal ascético vem proporcionar alívio e promessa de redenção. É nesse contexto que vem à luz, segundo a interpretação de Nietzsche, a imbricação essencial entre a ciência e o ideal ascético, no qual ele descreve a culminância catastrófica do ideal enquanto tal – particularmente o ideal de verdade como valor absoluto.
“O que me interessa deixar aqui indicado é isto: também na esfera mais espiritual o ideal ascético continua encontrando, no momento, apenas um tipo de inimigo verdadeiro capaz de prejudicá-lo: os comediantes* desse ideal – porque despertam desconfiança. Em toda outra parte onde o espírito esteja em ação, com força e rigor, e sem falseamentos, ele dispensa por completo o ideal – a expressão popular para essa abstinência é ‘ateísmo’: excetuada a sua vontade de verdade. Mas essa vontade, esse resto de ideal, é, se me acreditam, esse ideal mesmo em sua formulação mais estrita e mais espiritual, esotérico ao fim e ao cabo, despojado de todo acréscimo, e assim não tanto resto quanto âmago (Kern). O ateísmo incondicional e reto (–e somente seu ar é o que respiramos, nós, os homens mais espirituais dessa época!) não está, portanto, em oposição a esse ideal, como parece à primeira vista; é, isto sim, uma das últimas fases do seu desenvolvimento, uma de suas formas finais e consequências internas – é a apavorante catástrofe'" de uma educação para a verdade que dura dois milênios, que por fim se proíbe a mentira de crer em Deus.” [Nietzsche, F. Genealogia da Moral. III, 27. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 146s.].
Trata-se, como se percebe nas entrelinhas do texto acima citado, das fases do desenvolvimento do niilismo – e uma das provas disso é a alusão feita no início do § 27 à ‘história do niilismo europeu’, de que cuidaria o anunciado livro A Vontade de Poder. Ensaio de Transvaloração de Todos os Valores.
Ora, justamente no meio deste estratégico § 27, Nietzsche introduz um longo parêntese, para indicar uma analogia estrutural – ou mesmo uma invariância – na lógica do desenvolvimento da cultura ocidental e naquela da cultura oriental, identidade que vem à luz nos desdobramentos históricos do hinduísmo (a filosofia Sankhya e Buda) e do Cristianismo (os destinos da veracidade e moralidade cristãs), conduzindo à idêntica catástrofe, ou seja, à autossupressão (Selbstaufhebung) do ideal.
“(O mesmo desenvolvimento na Índia, em completa independência e por isso com algum valor de prova; o mesmo ideal levando ao mesmo fim; o ponto decisivo alcançado cinco séculos antes do calendário europeu, com Buda; mais precisamente, com a filosofia Sankhya, em seguida popularizada por Buda e transformada em religião.)” [Nietzsche, F. Genealogia da Moral. III, 27. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 147].
Trata-se de um parêntese decisivo, pois indica um elemento fundamental na teoria da cultura de Nietzsche: o valor de prova da interpretação que distingue no niilismo a lógica da decadência cultural encontra-se na repetição das mesmas fases de desenvolvimento, em completa independência dos dois termos da comparação. Até mesmo porque o desdobramento catastrófico na Índia atinge seu ponto culminante cinco séculos antes do calendário europeu, ou seja, cristão. Ora, esta interpretação lança luz sobre a designação por Nietzsche da Terra como um ‘astro ascético’, bem como sobre a concepção do filosofar como reminiscência e reconhecimento, sobre a importância decisiva da repetição. As filosofias ‘possíveis’ são um retorno a uma primeva morada perfeita da alma, um ‘atavismo de primeira ordem: “O curioso ar de família de todo filosofar indiano, grego e alemão tem uma explicação simples: Onde há parentesco linguístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática – quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais – tudo esteja disposto para uma evolução e uma sequência similares dos sistemas filosóficos”. [Nietzsche, F. Além do Bem e do Mal.§ 20. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, p. 24s.]
Estes elementos demonstram a importância do conteúdo deste curioso parêntese.
IHU On-Line – Pode-se dizer que, além da crítica à moral judaico-cristã, essa obra contém igualmente uma crítica à modernidade política?
Oswaldo Giacoia Junior – Não se trata nesse livro, de modo algum, apenas de uma crítica à moral judaico-cristã, mas de toda uma teoria do processo civilizatório e da hominização, pois o livro trata tanto da origem da oposição de valores Bem e Mal, como também do surgimento da consciência moral e, com ela e por ela, das noções de responsabilidade e liberdade – a saber, de todos os atributos que formam a humanidade do humano.
A crítica da modernidade política constitui um elemento desse imenso conjunto. A genealogia de Nietzsche traz à luz os vínculos e compromissos entre os valores fundamentais da modernidade cultural e política – como, por exemplo, a racionalidade lógica (vontade de verdade e cientificidade), o altruísmo, a moral da compaixão, o utilitarismo, mas também os ideais políticos de igualdade, liberdade e fraternidade como referências axiológicas de orientação para o pensamento e a ação – e suas condições históricas de proveniência: o platonismo e o Cristianismo. Este aspecto vem claramente à luz na crítica do social-darwinismo, da democracia, do socialismo e do anarquismo, tal como esta se articula em Para a Genealogia da Moral. Aquilo de que se trata no livro, como já tentei esclarecer em ocasiões anteriores, é de uma combinação entre a gênese desses valores e o valor dessa gênese.
IHU On-Line – Em que sentido Nietzsche aponta na Genealogia para uma gênese do processo civilizatório?
Oswaldo Giacoia Junior – Boa parte da segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral é dedicada à reconstituição genealógica dos sentimentos de dever, responsabilidade, culpa, moralidade, autonomia e das faculdades psíquicas que a eles correspondem, como a consciência, a memória, a vontade, o entendimento, a razão. O livro desenvolve uma hipótese a respeito da pré-história da humanidade – de acordo com uma noção de temporalidade sui generis, para a qual a pré-história, mesmo compreendida como o mais longo período da existência humana, está sempre presente, ou sempre pode retornar (GM. II, 9) – como os primórdios do processo de eticidade do costume, da moralidade humana: a pergunta-guia da segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral é uma resposta direta à pergunta que me foi formulada: o que se encontra em questão é a aventura de autoconstituição do homem como animal político, da passagem da physis ao nomos, da natureza à cultura: Como criar um animal que pode fazer promessas? Esta é, para Nietzsche, a tarefa paradoxal imposta pela natureza a si mesma, com relação ao homem – é o autêntico problema do homem, entendendo-se como genitivo tanto como objetivo quanto subjetivo. Trata-se da tarefa tornar o ‘animal homem’, até certo ponto, necessário, regular, uniforme, igual entre iguais, constante, e, portanto, confiável, de criar uma praxeologia como pré-história da práxis humana: o autêntico trabalho do homem sobre si mesmo.
IHU On-Line – Qual é a importância do perspectivismo e da transvaloração no surgimento de outros valores originando uma moral que supere aquela de matriz judaico-cristã?
Oswaldo Giacoia Junior – Entendo o perspectivismo como uma espécie de teoria do conhecimento nietzschiano. A capacidade de multiplicar perspectivas é o correspondente nietzschiano da noção tradicional de objetividade. Quanto à questão da superação, ela será tratada no conjunto das respostas.
IHU On-Line – Qual é a importância das categorias da memória e do ressentimento na moral que Nietzsche quer superar?
Oswaldo Giacoia Junior – O processo de humanização pressupõe um jogo complexo e inesgotável em sua profundidade entre memória e esquecimento. Para compreender a dificuldade da tarefa de criar no homem uma memória da vontade – condição primordial do processo de civilização – é necessário ter presente que o esquecimento não é, para Nietzsche, uma mera força inercial, mas uma força inibidora ativa, positiva, em última instância responsável pela saúde psíquica. O ressentimento constitui justamente uma disfunção dessa capacidade plástica de assimilação e poder de transformação dependente do esquecimento, sem o qual não pode haver ordem psíquica, já que, sem assimilação e metabolismo, não resta espaço para o novo. E com isso, não pode haver também ordem, tranquilidade, felicidade, esperança, perspectiva de futuro, nem sequer propriamente presente. Pois o ressentimento é um aprisionamento do psiquismo no passado – sobretudo sob a forma da incapacidade de assimilar e transformar uma vivência traumática; com o travamento do esquecimento, o trauma sempre de novo retorna, impedindo a abertura da consciência para novos estados, novas vivências. O ressentimento é causa de um mal-estar paradoxal, porque origina-se num sofrimento que busca desafogar-se imputando sua origem, sob a forma da culpa, a um causador, também ele capaz de sofrer. A imputação da culpa é a vingança, um sentimento hostil voltado contra o causador da dor, mas também uma potente descarga internalizada de afetos tônicos (destrutividade), com a qual se pretende narcotizar a dor congênita, da qual o sofredor não se pode livrar, porque ele acaba por se confundir com sua própria existência. Desse modo, a culpa e a vingança oferecem ao sofredor uma perspectiva de sentido para o sofrimento que ele é. Com isso, mesmo ao preço de uma vida danificada, a dor pode ser vivida e justificada.
IHU On-Line – Que chaves de leitura para uma genealogia do Direito surgem em Genealogia da Moral?
Oswaldo Giacoia Junior – Para a Genealogia da Moral reconstitui a pré-história da eticidade humana a partir de categorias que são econômico-jurídicas que são estruturantes do direito das obrigações: sobretudo troca, escambo, compra e venda, débito e crédito, a partir das quais Nietzsche faz a arqueo-genealogia tanto da religião como do direito penal. Trata-se de uma maneira original de compreender o universo do Direito, de acordo com a qual este não deriva de uma moralidade ínsita à natureza do homem. Pelo contrário, são os sentimentos, conceitos e faculdades morais que emergem e são configurados a partir de categorias econômico-jurídicas. Para Nietzsche, não conhecemos nenhum grau mais arcaico da sociabilidade e da civilização do que o domínio das relações de troca entre comprador e vendedor, credor e devedor, ou seja, do direito obrigacional. Daí deriva, por exemplo, todo direito penal, o conceito de castigo/pena como retribuição do mal (dano) e suas variantes.
IHU On-Line – Nos últimos anos o senhor tem se dedicado a estudar intersecções entre as filosofias de Nietzsche e Agamben. Como analisa a posição de Agamben acerca da impossibilidade do eterno retorno se concretizar frente ao evento Auschwitz?
Oswaldo Giacoia Junior – Penso que se pode caracterizá-la também em relação a Nietzsche. Agamben afirma que, depois de Auschwitz, o problema ético mudou radicalmente, e que a ética nietzschiana do amor fati [que abre o século XX] não dá conta do que ocorre conosco no presente: pois não se trata mais de vencer o espírito de vingança para assumir o passado, para querer que este retorne eternamente. Também não de manter firme, por meio do ressentimento, aquilo que não se pode humanamente tolerar, até o ponto de exigir a suspensão do tempo e do esquecimento, que com ele advém, como medida moral para tornar indelével as marcas daquilo que aconteceu no passado. Em nossos dias, num mundo onde a exceção tornou-se a regra, impõe-se, para Agamben o seguinte diagnóstico: “Doravante, estamos diante de um ser além da aceitação e da recusa, do eterno passado e do eterno presente – um evento que eternamente retorna, mas que, justamente por isso, é absolutamente, eternamente inassumível. Além do bem e do mal não está a inocência do devir, mas uma vergonha não somente sem culpa, mas, por assim dizer, sem tempo.” [Agamben, G. Quelche resta di Auschwitz (Homo Sacer III). Torino: BollatiBoringhieri, 1998, p. 94]. E, no entanto, é esta vergonha que nos coloca face a face com o nosso próprio tempo, com o que há nele de essencial: o tempo da indiferenciação, no qual confundem-se o contemporâneo e o arcaico.
IHU On-Line – Tomando em consideração o intento de Nietzsche de propor uma moral transvalorada, pode-se dizer em alguma medida que ele também reivindicava o aparecimento de formas de vida mais autênticas e afirmativas?
Oswaldo Giacoia Junior – Com apoio na filosofia de Nietzsche, abandonamos as ilusões a respeito das relações entre violência, poder e direito. Relações de poder existem sempre, mesmo e sobretudo lá onde se firmam contratos, que não são mais do que dispositivos jurídicos para assegurar, sempre provisoriamente, equilíbrios de forças em oposição e aliança. Direitos fundamentais não existem, em Nietzsche, como categorias supra-históricas, senão como instrumentos de realização de liberdades políticas conquistadas e sempre ameaçadas por desequilíbrios e reversões. A esse respeito, Nietzsche escreve: “Só quando os defensores da ordem futura contrapõem-se na luta aos defensores da ordem antiga, e ambas as potências acham-se iguais ou semelhantes, então é que contratos são possíveis, e sobre a base de contratos surge posteriormente uma justiça. – Não existem direitos do homem (Menschenrechte)”. No universo nietzschiano nem consenso nem contrato exercem qualquer papel transcendental.
Se novos caminhos para a política em nossas sociedades podem ser pensados, mesmo no horizonte de um niilismo extremo, como o que atravessamos hoje, então eles poderiam ser divisados numa reconfiguração dos quadros categoriais de nosso pensamento político, que o emancipasse da hegemonia tradicional da forma jurídica, particularmente da figura do Estado e seus aparelhos, da justiça pensada a partir da soberania estatal. A concepção nietzscheana de direito se contrói na contracorrente tanto do jusnaturalismo clássico quanto do utilitarismo anglo-saxônico, das diferentes correntes modernas do positivismo jurídico e das teorias procedimentais da justiça. O viés eminentemente crítico que constitui sua característica principal, sua aguda compreensão da importância e a enorme complexidade da problemática do poder no mundo contemporâneo aproxima Nietzsche consideravelmente de algumas importantes teorias jusfilosóficas contemporâneas, que se esforçam por pensar as relações entre direito e democracia para além do paradigma do consenso.
Em relação a isso, penso que as posições de Agamben a respeito de uma profanação do direito, a respeito da necessidade de abolição da forma direito remetem, de forma expressa ou implícita, à filosofia política de Nietzsche – embora não se possa minimizar sua vinculação a Marx e Walter Benjamin . Pois o messianismo de Agamben está essencialmente fundado na necessidade de superação da forma direito, da relação instrumental entre meios e fins, e, sobretudo, no conceito, para ele cardinal, de violência pura – um conceito que tanto abole a soberania da lei pelo pleroma da graça, quanto instaura, no tempo do agora, um novo horizonte para a justiça. A crítica da violência, bem como a noção de uma violência pura, derivados da obra de Walter Benjamin, constituem para Agamben um operador-chave na interpretação da filosofia da história. Trata-se de uma arquegenealogia do ‘monopólio estatal da força, da dialética vigente entre uma violência instituidora e uma violência asseguradora e aplicadora do direito; entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado, cuja matriz teórica está plasmada no contrato social jusnaturalista. É na ruptura da alternância cíclica dos polos dessa dialética entre uma força que institui o direito e um poder que o aplica e mantém vigente – uma modalidade de repetição que se aproxima da necessidade mítica do Destino – que se abre, também para Agamben, a possibilidade de uma superação do ‘estado de exceção’, da violência soberana exercida como decisão soberana sobre a vida e a morte dos homini sacer.
IHU On-Line – Nietzsche propõe a transvaloração dos valores para superar a decadência de uma moral que se quer unívoca. Agamben lança a ideia da profanação como contradispositivo para restaurar ao uso comum aquilo que havia sido separado pelo sacrifício. Em que sentido é possível pensar esses dois expedientes como a origem para uma outra política?
Oswaldo Giacoia Junior – Penso que, em Nietzsche, um vetor importante pode ser encontrado no conceito de sublimação. Por exemplo, uma violência sublimada, capaz de renunciar completamente à crueldade dos castigos, e, com isso, ser capaz de uma autêntica realização da justiça, cuja vigência e legitimação colocam-se para além da esfera da vingança, do direito e da lei: esse é um dos principais insights da autossuperação nietzschiana da justiça. “Cabe evocar, nesse contexto, que os termos Erlösung, erlösen, Erlöser remetem ao radical lös (no grego antigo luein, livrar ou desatar como o faz Dionisios, o lusos, que desata os laços na ordem sexual ou familiar), indica a dissolução, o desfecho, a resolução ou solução de um problema, por exemplo por seu desaparecimento bem-vindo.”
Em 16.11.2013, em Atenas, a convite da sociedade Nicos Poulantzas, Giorgio Agamben proferiu uma conferência em Atenas na qual referia-se à necessidade de pensar o fim da democracia precisamente no lugar onde esta nasceu, já que o paradigma do Estado contemporêno não apenas não é mais democrático, como também não pode mais ser considerado político, no sentido originariamente grego desse termo. “A hipótese que gostaria de aqui sugerir é que, submetendo-se ao signo da segurança, o estado moderno abandonou o domínio da política e entrou numa terra de ninguém, cuja geografia e fronteiras são ainda desconhecidas. O Estado securitário, cujo nome parece referir uma ausência de cuidados (securus de sine cura) deverá, pelo contrário, procupar-nos sobre os perigos que representa para a democracia, porque nele se tornou impossível a vida política, e democracia significa precisamente a possibilidade de uma vida política. Mas gostaria de concluir – ou simplesmente de parar a minha palestra (na filosofia, como na arte, não há conclusão possível, há apenas a possibilidade de abandonar o trabalho) com algo que, tanto quanto posso verificar, é talvez o mais urgente dos problemas políticos. Se o Estado que temos perante nós é o estado securitário que descrevi, temos de repensar novamente as estratégias tradicionais dos conflitos políticos. O que devemos fazer, que estratégia devemos seguir?” Estas são perguntas que o pensamento de Nietzsche pode nos ajudar a formular e, quem sabe, também a tentar responder.
IHU On-Line – Percebe alguma convergência entre o diagnóstico do presente realizado por Agamben e aquele do niilismo, feito por Nietzsche? Como esses pensadores nos ajudam a compreender o tempo em que vivemos?
Oswaldo Giacoia Junior – A este respeito, e mesmo porque já me estendi em demasia, concluo com uma citação do próprio Agamben, na qual a referência a uma terminologia proveniente da filosofia de Nietzsche deixa perceber tanto esta convergência quanto a contribuição desses autores para a compreensão dos problemas cruciais de nosso tempo: Se, conforme nossas análises precedentes, vemos na impossibilidade de distinguir a lei e a vida o caráter essencial do estado de exceção, então a confrontar-se estão aqui duas diversas interpretações deste estado: de um lado aquela (e a posição de Scholem ) que nele vê uma vigência sem significado, um manter-se da pura forma da lei além do seu conteúdo; do outro, o gesto benjaminiano, para o qual o estado de exceção transmutado em regra assinala a consumação da lei e o seu tornar-se indiscernível da vida que devia regular. A um niilismo imperfeito, que deixa subsistir indefinidamente o nada na forma de uma vigência sem significado, se opõe o niilismo messiânico de Benjamin, que nulifica até o nada e não deixa valer a forma da lei para além do seu conteúdo”. [ Agamben, G. Homo Sacer I. O Poder Soberano e a Vida Nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 61]. É possível perceber no texto de Agamben o eco da história do niilismo europeu, tal como reconstituída por Nietzsche. Trata-se, em ambos os casos, de uma superação da forma da lei por um resto da própria lei. Sugeri essa figura na resposta à primeira questão que me foi proposta. Que Nietzsche desconhecesse a origem do problema do ‘resto’ no messianismo judaico-cristão, em particular na tradição que remonta aos profetas do Antigo Testamento é uma hipótese bastante improvável.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Oswaldo Giacoia Junior – Apenas expressar minha profunda gratidão pela oportunidade e privilégio que me foram conferidos por esta entrevista. ■
Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado
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